A política monetária e o (não) regresso ao passado
A estratégia de política monetária pouco pode mudar sem gerar um enorme risco de disrupção sistémica global. E isso é algo que nenhum banqueiro central se atreverá a provocar.
À entrada desta nova década, a única previsão que faço para os próximos anos é de que será muito difícil normalizar o pendor extraordinariamente expansionista da política monetária global, mesmo num cenário de recuperação do crescimento global. A razão é simples: O elevadíssimo nível de endividamento mundial, que não só cresce incessantemente, como se situa bem para lá dos patamares tóxicos atingidos nas vésperas da crise financeira em 2008 (gráfico 1).
Como é sabido, mais dívida implica um serviço de dívida (ainda) mais oneroso, a não ser em caso de redução continuada das taxas de juro, que foi precisamente a tática adotada pelos bancos centrais das principais economias desde 2008. O gráfico 2 ilustra bem a importância da redução das taxas de juro na sustentabilidade da dívida mundial, dado que o serviço de dívida (no caso vertente referente ao setor privado) caiu de forma generalizada, com a exceção óbvia dos EUA.
De facto, o processo de lenta normalização a que a Reserva Federal submeteu a política monetária entre 2015 e 2018 conduziu a um agravamento do custo da dívida, que acabou por determinar a reversão do movimento de subida das taxas de juro na passagem de 2018 para 2019. Tal reversão afigura-se paradigmática para a minha tese de impossibilidade de normalização da política monetária ultra-expansionista por ter ocorrido num contexto histórico que dificilmente podia ser mais favorável, dado que foi caracterizado por um forte crescimento da economia norte-americana, por taxas de desemprego historicamente baixas e pela convergência da inflação para o objetivo do banco central.
Acontece que não é só o peso serviço da dívida que torna a normalização da política monetária uma distante quimera. A estratégia de fixação das taxas de juro em torno de zero e de injeção massiva de liquidez teve um impacto tremendo na valorização dos ativos financeiros, pelo que uma reversão destas políticas teria como consequência provável uma significativa desestabilização do sistema financeiro internacional.
De tudo isto resulta uma curiosa ironia, que consiste no facto da longevidade desta estratégia não-convencional de política monetária ser consequência mais dos seus deméritos do que dos seus méritos. Isto porque o expansionismo monetário agrava a situação de endividamento excessivo e conduz a valorizações ainda mais generosas dos ativos financeiros, dinâmicas cuja sustentabilidade exige condições monetárias cada vez mais acomodatícias, numa circularidade inexpugnável.
Se fosse um organismo vivo, a política monetária ultra-expansionista seria um enorme sucesso na perspetiva da biologia evolucionista, por rapidamente ter conseguido passar de experiência temporária para a espécie dominante no ecossistema das políticas económicas.
O novo meme da política monetária
Significa isto que, no caso específico da área do euro, ficaremos com taxas de juro negativas para sempre? Talvez não, devido à fulgurante emergência de uma nova narrativa na esfera dos bancos centrais: A chamada ‘reversal rate’, que corresponde ao ponto das taxas de juro abaixo do qual o efeito da política monetária se torna perverso, ou seja, ao invés de estimular a economia, penaliza-a.
Sem fundamentação teórica ou empírica estruturada, os arautos desta narrativa afirmam que o tal nível crítico (‘reversal rate’) se deverá situar em zero, levando, de uma só assentada, à transformação das taxas de juro negativas de panaceia em anátema.
Não obstante a sua recém-chegada ao debate, este novo meme já conquistou um troféu de monta, que foi a eliminação das taxas de juro negativas por parte do Riksbank (banco central da Suécia) no final de 2019. Desconfio que este movimento possa vir a ser replicado pelo BCE. Se assim for, o meme das ‘reversal rates’ certamente será alvo de inúmeras análises laudatórias. Mas, no fim das contas, será apenas mais um expediente para manter viva uma estratégia de política monetária que, como tentei argumentar, pouco pode mudar sem gerar um enorme risco de disrupção sistémica global. E isso é algo que nenhum banqueiro central se atreverá a provocar.
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