A posição de Portugal e o futuro espaço comum da UE
O futuro da UE só faz sentido se assentar no autogoverno de sociedades democráticas e livres, se for uma união de estados soberanos que sirva os povos com as suas particularidades histórico-culturais.
Estão em discussão mudanças significativas no funcionamento da União Europeia que os portugueses ignoram apesar de poderem vir a ter um grande impacto nas suas vidas. O que está em causa é uma proposta franco-alemã que defende o fim da igualdade entre os países e o estabelecimento de nações de primeira, de segunda e de terceira categoria.
A falta de transparência no seu funcionamento e as questões em discussão deveriam ser os dois principais temas das eleições para o parlamento da UE que se aproximam. Nessas eleições os portugueses não devem pensar apenas nas preocupações do dia-a-dia porque estes temas afectam o seu futuro e o de Portugal de uma forma muito séria.
A UE começou há 72 anos e é um projecto de inegável sucesso associado a mais liberdade, a mais democracia e a maior desenvolvimento económico. Acima de tudo, pela expansão da liberdade e da democracia a quase todo o continente europeu e, graças a isso, pela paz na Europa ocidental nos últimos 78 anos.
O alargamento da UE foi o “agente” desta expansão que permitiu uma real democracia nos países que se diziam do centralismo “democrático”. Portugal é um exemplo disso porque aderiu às então Comunidades Europeias para eliminar o centralismo “democrático” do pós-25 de Abril, consolidar a liberdade e a democracia, e para se desenvolver.
Isto é muito importante porque o centralismo, na sua opacidade e no seu distanciamento face às pessoas, torna-se, a partir de um certo grau, um inimigo da liberdade, da democracia e de sociedades descentralizadas, em que cada pessoa tem autonomia para viver conforme quer, para participar na comunidade e para expressar as suas vontades e preferências. O que está em discussão na UE é precisamente o centralismo que pode pôr em causa esta ideia de espaço comum. O Brexit foi já um sinal disso.
A manipulação do Mercado Único
Um exemplo de centralismo na UE é a forma como o Mercado Único está a ser gerido. O Mercado Único é uma das grandes realizações, eu diria que a maior, de todo o processo da UE. Foi criado para promover o desenvolvimento económico e social dos povos e funciona de uma forma descentralizada. Mas está com dois problemas muito sérios:
I – Ao longo dos anos o Mercado Único tornou-se a forma de transferir competências dos governos democraticamente eleitos para a Comissão Europeia.
A legislação sobre o mercado único foi usada para que a Comissão acumulasse competências e a possibilidade de intervir em áreas tão diversas como o ambiente, o digital, as relações de trabalho, os mercados de bens e financeiros, as políticas de ciência e inovação ou diferentes licenciamentos e procedimentos burocráticos.
Em nome do mercado único levou-se longe de mais a harmonização legal e, nesse processo, foram e continuam a ser menosprezados dois princípios fundamentais para a legitimidade das instituições da UE – a Subsidiariedade e a Proporcionalidade. Ou seja, que “a UE só deve intervir se e na medida em que os objectivos prosseguidos pela acção considerada em cada caso concreto não puderem ser alcançados de modo suficiente pelos países”.
Um exemplo disso é a tentativa de controlo de uma nova fonte de receita pela harmonização fiscal dos impostos sobre as empresas, que a Comissão tenta alcançar há 60 anos.
II – O segundo problema é mais recente e é o de que a ideia que levou à criação do Mercado Único está a ser totalmente desvalorizada.
Até há pouco tempo havia a preocupação de que um “level playing field” permitisse que o mercado funcionasse com regras bem definidas e sem beneficiar nenhum dos agentes económicos. Isso agora acabou. E um sinal claro foi o fim da notoriedade pública da Comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, que saiu de cena já há algum tempo.
E porquê? Porque a Comissão, a quem os países delegaram a responsabilidade de garantir o bom funcionamento do Mercado Único, é quem agora desrespeita esse mesmo mercado.
A Comissão, com o apoio de alguns Estados, tornou-se uma entidade de promoção de grandes empresas francesas, alemãs, espanholas ou italianas, em áreas como a energia, a defesa, as comunicações ou os mercados financeiros, e usa cada vez mais práticas de desrespeito da concorrência e de subsidiação de empresas para se afirmar politicamente e obter notoriedade.
Os programas com esse fim são vários: Projectos Europeus de Interesse Comum, Política Industrial Europeia, Transição Energética ou Autonomia Estratégica da EU. Todos constituem bases legais para a promoção de campeões da UE e para passar para a Comissão áreas da exclusiva responsabilidade dos países.
Porque é que isto é um problema que diz respeito às pessoas? Por várias razões:
- Há uma crescente subsidiação de empresas e há maiores distorções criadas pelos fundos europeus que prejudicam a concorrência e levam a preços de produtos mais caros.
- A nova política industrial arrisca repetir o desperdício de recursos do passado na escolha de campeões nacionais, e quem o vai pagar são os contribuintes.
- Estes programas destinam-se a grandes empresas, que em Portugal são escassas porque é uma economia que assenta quase exclusivamente em PMEs.
Se as regras do Mercado Único já não se aplicam totalmente, Portugal estará em desvantagem face aos países mais ricos se a política industrial se instalar e o “level playing field” se desmoronar porque tem menos recursos e empresas mais pequenas. Nada disto beneficia Portugal e nem o Mercado Único nem a UEM não foram pensados para ser assim.
O futuro da UE enquanto espaço comum
E isto leva-nos de regresso à questão actual do funcionamento e do futuro de Portugal no espaço comum que deve ser a UE. A questão que é essencial para os portugueses é esta: uma economia menos desenvolvida e periférica como a nossa está a beneficiar com a integração económica e a convergir com os países mais desenvolvidos?
Uma economia menos desenvolvida e periférica como a nossa está a beneficiar com a integração económica e a convergir com os países mais desenvolvidos? O que se observa é que apesar das políticas de coesão, criadas em complemento ao mercado único para ajudar os países da periferia a convergirem, a crescente centralização e a desvalorização do Mercado Único estão associadas a uma divergência económica de Portugal com os países mais desenvolvidos que dura há mais de 20 anos, desde 2000.
O que se observa é que apesar das políticas de coesão, criadas em complemento ao mercado único para ajudar os países da periferia a convergirem, a crescente centralização e a desvalorização do Mercado Único estão associadas a uma divergência económica de Portugal com os países mais desenvolvidos que dura há mais de 20 anos, desde 2000.
As mudanças significativas no funcionamento da UE que estão em discussão, designadamente uma proposta franco-alemã que propõe que haja países de primeira, de segunda e de terceira categoria, apontam precisamente para o reforço desta centralização que está associada à divergência económica de Portugal:
a) Formaliza a Europa a 4 velocidades, uma ideia errada porque França e Alemanha não são os donos da UE, mas a sua proposta põe em causa a união como espaço comum dos povos da Europa, e tardia porque reconhece o erro que foi a recusa das tentativas do Sr. Cameron para que o estatuto do Reino Unido fosse “flexibilizado”, dando origem ao referendo e ao Brexit.
b) Prevê uma nova redução de deputados no Parlamento da UE (Portugal tinha 24 em 2004 e agora tem apenas 21) sem nada propor sobre a baixíssima participação nas eleições – em 2019 foram 28,6% os que votaram em partidos no nosso país.
c) Admite o fim do poder de veto e mais decisões por maioria qualificada em áreas de política externa e de segurança comum. Com que fundamento é que Portugal pode concordar?
d) Defende a harmonização fiscal, a cobrança de impostos pela UE, o fim da unanimidade na sua definição e o desprezo pelas Finanças Públicas como área de soberania.
e) Elimina o princípio de um comissário por país.
O que deve ser urgentemente discutido em Portugal é qual vai ser a nossa posição perante os riscos de centralismo, de desvalorização da ideia do Mercado Único e de maior divergência no desenvolvimento que estas propostas para o funcionamento da UE trazem?
Como vamos reagir perante o facto de não ser apenas Portugal, mas também as economias mais desenvolvidas que estão num processo de décadas de desaceleração do crescimento?
Até aqui, a nossa posição tem sido a de sermos bons alunos e disciplinados, e em troca recebemos avultados fundos europeus. Quer isso dizer que:
I – Devemos continuar a ser bons alunos e aceitar maior centralismo em troca de mais fundos europeus? um PRR permanente e a ”Ever closer union”, como deseja o governo?
O resultado “harmonizado” do centralismo só é obtido pela imposição de uma “vontade geral” com menos liberdade e autogoverno. Devemos prescindir daquilo que nos distingue? Da nossa identidade, da nossa língua, da nossa cultura, da nossa autonomia? Devemos ceder soberania para mãos que nos são estranhas? Em que é que isso nos beneficia?
Há 35 anos que recebemos fundos europeus e nos últimos 20 anos foram em valor muito superior aos anteriores, e isso não impediu a nossa divergência de desenvolvimento com a UE. Por isso não parece ser esta a solução que resolve os desafios com que Portugal se defronta.
II – Ou devemos procurar outra solução mais razoável? uma solução que volte aos valores centrais da UE?
O mercado único é a grande conquista na prossecução das ideias centrais da UE porque, como instituição descentralizada que é, promove o desenvolvimento económico e a liberdade, sendo compatível com os requisitos democráticos do autogoverno:
i) Está orientado para a criação de riqueza através da maior eficiência na aplicação de recursos
ii) Permite políticas económicas adequadas à realidade de cada país e não às diretrizes e às condicionalidades do Semestre Europeu.
iii) É compatível com a solidariedade entre Estados.
A proposta franco-alemã não se preocupa com o Mercado Único, apenas se preocupa com mais condicionalidades no uso dos fundos europeus. Mas a coordenação de políticas económicas na UE que desejam apenas se justifica se a autonomia dos países criar efeitos de alastramento transfronteiriços negativos muito significativos (reais e não teóricos), gerando um interesse comum às diferentes populações (como no livre comércio, ambiente ou defesa).
Portugal deve defender o regresso aos valores centrais da UE: liberdade, democracia e descentralização, que são muito mais importantes do que uma união cada vez mais estreita. Isso requer a revalorização do Mercado Único (em especial os serviços, que são 80% da economia) e políticas económicas que respeitem as suas especificidades para poder voltar a convergir. Só esta revalorização é compatível com diferentes preferências e objectivos dos povos, e o único resultado aceitável de um processo com preferências variadas é uma união polifacetada (e não uma entidade centralizada e a 4 velocidades).
Eu sou um europeísta e o futuro da UE só faz sentido se assentar no autogoverno de sociedades democráticas e livres, e se for uma união de estados soberanos que sirva os povos e assuma as suas particularidades histórico-culturais.
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