A reforma (adiada) das Finanças Públicas

A gestão e controlo da despesa pública continuam a ser o “parente pobre” da política orçamental. Centeno percebeu que mais transparência iam criar um problema ao seu “sucesso orçamental”. 

Há duas semanas o Tribunal de Contas publicou um relatório de auditoria sobre a reforma da Lei de Enquadramento Orçamental. O relatório é muito crítico destes últimos 4 anos, assinalando que foi uma reforma esquecida e adiada.

Recordemos o que se passou nestes últimos anos. Com a crise e o pedido de assistência financeira à “troika”, ficaram ainda mais evidentes as debilidades do reporte financeiro do Estado. Ficou ainda mais claro que o Estado não consegue ter uma gestão financeira e orçamental de qualidade. Que esta era feita sobretudo com base nas normas e procedimentos dos anos 80 (quando no final dos anos 80 se fez a RAFE – Reforma da Administração Financeira do Estado) e em alguns casos com normas e procedimentos dos anos 50 e 60.

No MoU com a “troika” estabeleceram-se algumas medidas de melhoria da qualidade de reporte das Finanças Públicas. Mas aí a ênfase foi sobretudo no reporte e controlo orçamental. Ou seja, o centro dessas medidas era controlar as entidades mais “gastadoras”, para que não surgissem “surpresas” a “meio” do ano orçamental. Dessa forma, as empresas públicas passaram quase todas a integram o perímetro das AP´s (contando para o défice e a dívida pública), embora isso também tenha resultado de sucessivas revisões do Eurostat. E para controlar essas entidades, passaram a ter de reportar à DGO mensalmente a sua execução orçamental (passando a designar-se por “Entidades Públicas Reclassificadas”).

Com o fim do programa da “troika”, o governo PSD/CDS iniciou o processo de elaboração de uma nova Lei de Enquadramento Orçamental (LEO). A LEO é uma lei de valor reforçado, ou seja, submetendo-se à Constituição, é uma lei que estabelece as bases, princípios e regras das Finanças Públicas e da gestão financeira do setor público. É a “trave-mestra” em que depois assentam todas as normas e procedimentos que regem a atividade financeira do Estado.

A LEO era uma lei de 2001 (governo Guterres), que teve sete revisões (em alguns casos para acompanhar as mudanças na supervisão económica e orçamental Europeia, nomeadamente no Tratado Orçamental e no semestre Europeu). Dado o número elevado de revisões, o governo optou em 2014 por fazer uma nova Lei (embora naturalmente muito do que estava na lei de 2001 com as revisões se tenha mantido na nova LEO). Nomeou uma comissão presidida pelo meu colega de Direito na área das Finanças Públicas, e por quem tenho muita estima, Guilherme Waldemar Oliveira Martins, que veio a ser secretário de estado das infraestruturas entre 2015 e 2018 no governo de António Costa.

A nova LEO foi aprovada em 2015, com a abstenção do Partido Socialista, que se absteve por mera questão eleitoral, porque na génese concordava com o que estava na nova LEO.

A nova LEO tem dois grandes objetivos: por um lado, concluir a transposição para o nosso normativo jurídico das regras Europeias do Tratado Orçamental e do Semestre Europeu e, por outro lado, melhorar substancialmente a qualidade da gestão financeira do Estado, do reporte e controlo e permitir a introdução de uma efetiva Orçamentação por Programas, isto é, uma orçamentação por performance e não meramente incremental.

A literatura económica é clara ao concluir que princípios e regras orçamentais têm um papel crítico no rigor, na transparência e na necessidade de proteção dos particulares contra os abusos e excessos financeiros do poder público. A subordinação das Finanças Públicas, em particular do Orçamento de Estado, a estes princípios, visa uma gestão mais eficiente dos recursos públicos, mas também uma maior capacidade de controlo por parte dos órgãos de fiscalização, a começar na Assembleia da República.

A nova LEO previa um conjunto de medidas a jusante. Ou seja, tinha após a aprovação da lei, um caderno de encargos muito exigente, com a introdução e execução de medidas concretas que operacionalizavam esta reforma.

O que diz o Tribunal de Contas sobre esse processo e sobre os últimos 4 anos de implementação da reforma?

  • Que houve uma total ausência de progressos nestes quatro anos. Que a reforma, que inicialmente deveria ter sido implementada até 2018, já foi adiada para 2021. Mas que mesmo essa data não se vai concretizar.
  • Que a estrutura de governação não foi operacionalizada (acrescento eu: a entidade que é suposto fazer esta reforma (a UNILEO), no espaço de menos de dois anos, já vai no terceiro diretor, tendo os dois anteriores saído em conflito com a inércia e incapacidade de tomar decisões do secretário de Estado do Orçamento).
  • Que dos 21 projetos de implementação da mudança, ao fim de quatro anos, apenas dois estão concluídos.

O contraditório do ministro das Finanças (pág. 45 e 46 do relatório do Tribunal de Contas) é esclarecedor sobre a posição e vontade nesta reforma. Diz o Ministro que a reforma não avançou praticamente nada porque pode por em causa a informação financeira essencial da República. Não sei o que isso quer dizer, mas suspeito que o ministro percebeu muito cedo que mais transparência e ‘accountability‘ iam criar um problema ao seu “sucesso orçamental”.

Além disso, estes quatro anos caracterizaram-se por um ataque permanente pelo Governo e pela geringonça às instituições independentes deste país, nomeadamente o Conselho de Finanças Públicas e a UTAO na parte orçamental. Há cada vez menos transparência orçamental. Este Governo e o doutor Centeno gostam pouco do contraditório. Talvez porque sabem bem como o “seu milagre orçamental” é conjuntural. Isto porque o Doutor Centeno acha que todos os que o criticam estão contra ele. Como são todas as entidades independentes (nacionais e internacionais), o Doutor Centeno acha que o mundo inteiro está contra ele. Mesmo que a conjuntura o tenha ajudado nestes 4 anos como poucas vezes ajudou um ministro das Finanças.

Assim, a gestão e controlo da despesa pública continuam a ser o “parente pobre” da condução da política orçamental em Portugal. A partir de 1994, Portugal encetou um processo de reforma da sua Administração Fiscal. Foi feito um enorme investimento em recursos humanos e tecnológicos, que puseram a Administração Fiscal Portuguesa no top mundial. Sobretudo, a então DGCI, teve uma transformação notável, da qual o portal das finanças é apenas a face visível.

Essa política de investimento e reforma trouxe dividendos: não apenas a relação entre os contribuintes e o Estado melhorou (apesar de hoje haver críticas de uma maior prepotência por parte da máquina tributária), mas sobretudo a cobrança fiscal aumentou de forma muito significativa. Em 1995, o Estado cobrava menos de 200 M€/ano em divida executiva. Hoje cobra mais de 1.5 mil M€/ano.

Se este esforço e investimento do lado da máquina que gere 90% da receita corrente (e que foi notável e correto, transpondo governos de diferentes cores) tivesse sido acompanhado por idêntico investimento do lado do controlo da despesa, Portugal teria tido uma situação orçamental muito mais equilibrada.

Os ganhos marginais na cobrança fiscal podem ainda ser consideráveis, e seguramente que há ainda muito a fazer no combate à economia paralela e à fraude e evasão fiscal. Mas o grande desafio dos próximos dez anos passa pelo controlo e redução da despesa corrente primária, através de um investimento significativo na DGO, na ESPAP e outras entidades do Ministério das Finanças, bem como nas entidades ministeriais que controlam o orçamento.

Isto só é possível com uma mudança da organização e da estrutura da Administração Pública, com o aumento do nível de competências dos Recursos Humanos, com o papel transformador da implementação de sistemas de informação com a reengenharia dos processos e procedimentos atuais e a redefinição de normas legais.
Mas, sobretudo, com um forte compromisso e liderança política, sob a supervisão do ministro das Finanças. Assim haja mais vontade do que a que temos assistido nos últimos quatro anos.

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