A “Reforma” da Contratação Pública e o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção. Crónica em três Partes de uma Oportunidade Perdida
O Presidente da República podia e devia ter exigido a conversão do IMPIC num regulador, atribuindo-se a este as obrigações que foram alocadas à “Comissão Independente”.
I Parte
Em 2015, foi aprovada a nova orgânica do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. (IMPIC). O Estado sentiu “a necessidade de dar resposta ao modelo de governação dos contratos públicos tal como exigido pelas novas diretivas de contratação pública (…), revendo as “as atribuições que ao mesmo [IMPIC] devem competir no domínio dos contratos públicos” (ver preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/2015, de 13 de outubro).
Em consequência, ficaram previstas no artigo 3.º n.º 3 do referido diploma, um conjunto de atribuições do IMPIC que fazem deste o pivot da governação e regulação da contratação pública.
Sucede, porém, que o IMPIC não é um regulador. Mas o seu papel é determinante, designadamente por força da forma laboriosa e abnegada como tem desempenhado os seus poderes de regulação, elaborando e emitindo diversas orientações técnicas a respeito de várias matérias reguladas pelo Código dos Contratos Públicos e/ou legislação avulsa (por exemplo, sobre as plataformas eletrónicas): não podemos esquecer que o Código dos Contratos Públicos é aplicado por inúmeras entidades públicas, de natureza, meios e recursos, humanos e financeiros, muito diversa entre si e, portanto, é indispensável que o IMPIC mantenha – como tem feito até aqui – a sua atividade.
A entidade pública que detém as mais importantes responsabilidades na regulação e governação do sector da contratação pública (e da construção e do imobiliário) em Portugal, esteve mais de 3 anos e quase cinco meses sem ninguém nomeado que presidisse aos seus destinos. Não se notou nenhum sobressalto do (e no) poder político.
II Parte
A Assembleia da República, sob proposta do Governo, aprovou uma revisão do Código dos Contratos Públicos e diversos regimes especiais de contratação pública.
Sucede, porém, que o Presidente da República vetou politicamente essa “reforma”, mostrando-se particularmente impressionado com o modo de composição da comissão “controladora” – temendo pela sua independência na fiscalização de matéria tão sensível.
O diploma foi revisto e o Presidente da República promulgou então o novo Decreto da Assembleia da República, que foi, finalmente, publicado no Diário da República no passado dia 21 de maio de 2021 (Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, que já entrou em vigor).
A essa “Comissão Independente” caberá, basicamente, zelar pela boa aplicação dos dinheiros públicos, garantir a integridade e legalidade dos processos de contratação pública e fiscalizar a boa execução dos respetivos contratos. Para esse efeito, é então constituída por cinco membros, cabendo à Assembleia da República assegurar apoio administrativo, logístico e financeiro.
É legítimo pensar que uma tal empreitada não será, humanamente falando, passível de ser levada a cabo por cinco pessoas.
III Parte
No momento em que foi confrontado com o Decreto da Assembleia da República e tendo presente a existência do IMPIC e a evolução do Direito Europeu em matéria de governação da contratação pública (que aponta para a existência de um regulador ao nível dos Estados-Membros), o Presidente da República podia e devia ter exigido a conversão do IMPIC num regulador, atribuindo-se a este as obrigações que foram alocadas à “Comissão Independente”.
A conversão do IMPIC num regulador – garantindo independência política – seria, no atual contexto político e jurídico, a única solução capaz de responder às dúvidas que regimes especiais de contratação pública dominados pela subtração e/ou aversão à concorrência suscitam nos cidadãos e empresas, tanto pelo histórico de Portugal nesta matéria, tanto pelos recentíssimos exemplos de procedimentos de contratação pública levados a cabo no âmbito do exercício da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia.
E seria uma resposta adequada, tirando partido da organização administrativa existente, de quem tem conhecimento profundo das matérias em causa, que as acompanha, que, em rigor, já é titular de poderes de regulação.
Para quê criar (mais) uma comissão (inútil?) e não tirar antes partido do papel central do IMPIC em matéria de governação da contratação pública?
A Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, pela oportunidade perdida e pela opção de acentuar o papel do Tribunal de Contas, não como uma entidade de controlo externo, mas como (mais) uma entidade de controlo interno (é nisso que se traduz a fiscalização prévia, sendo que o modo como a fiscalização concomitante foi configurada nesta nova Lei pouco ou nada se diferencia daquela), desqualifica o papel desempenhado por duas Instituições (IMPIC e Tribunal de Contas) e, como todos sabemos, sem a defesa e consolidação das nossas Instituições, ficamos todos a perder.
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