A rua não governa: O mito do seu poder

As manifestações produzem emoção, mas não soluções, criam ruído, mas não reformas, reforçam posições corporativas, mas não o bem-estar coletivo.

O mito do poder da rua continua a pairar sobre a política portuguesa como uma ficção convenientemente repetida, apesar de a realidade económica e institucional a desmentir todos os dias. Persiste a ideia de que manifestações representam o “povo”, quando na verdade representam apenas grupos organizados com capacidade de pressão. Confunde-se barulho com legitimidade, mobilização com representatividade, emoção com racionalidade. A rua exerce um poder artificial, ruidoso e momentâneo — mas não um poder de facto. E quando governos começam a tratá-lo como tal, abrem a porta à instabilidade, ao retrocesso e à erosão da credibilidade.

A economia ensina-nos que decisões eficientes exigem estabilidade, coerência temporal e previsibilidade. A Teoria da Inconsistência Dinâmica de Kydland e Prescott explicou há quase meio século que a credibilidade das políticas públicas depende de compromissos firmes e não de reações impulsivas a pressões externas. Sempre que um governo modifica reformas estruturais para satisfazer o humor de uma manifestação, compromete a consistência dinâmica intertemporal, aumenta o risco político e enfraquece a sua própria capacidade de ação no futuro. A economia não perdoa estas cedências: mercados penalizam a incerteza, investidores adiam projetos, e o país perde o tempo e o foco que lhe faltam há décadas.

O caso recente é exemplar. O Governo de centro-direita, liberal e assumidamente reformista, cedeu à pressão da UGT e repôs três dias de férias ligados à assiduidade, além de abandonar a simplificação dos despedimentos nas médias empresas. Fê-lo para tentar evitar uma greve geral; mas a UGT manteve a greve. Ou seja: o Governo pagou o preço e não obteve nada em troca. O poder da rua revelou-se artificial, mas ainda assim suficiente para bloquear reformas essenciais. Um governo que vive de cedências torna-se previsível — e um governo previsível na sua fraqueza é um governo capturado.

A Economia Política ajuda a explicar esta dinâmica. As manifestações não são expressões puras da vontade popular; são instrumentos de grupos de interesse organizados, com incentivos assimétricos e capacidade para gerar custos políticos imediatos. A Teoria da Ação Coletiva de Olson descreve como grupos pequenos, organizados e com interesses concentrados conseguem capturar políticas públicas à custa de maiorias dispersas e desorganizadas. É exatamente isso que acontece quando sindicatos conseguem bloquear reformas pagas por todos, em nome de reivindicações que beneficiam poucos.

Mas para além da teoria, existe a prática — e com ela, exemplos claros de como o poder da rua é, na verdade, um poder frágil, superficial e frequentemente ineficaz. A grande manifestação da função pública nos anos que antecederam a troika não impediu nem o congelamento salarial, nem o corte de benefícios, nem a alteração profunda de carreiras. A rua gritou — mas o país caiu na austeridade na mesma.

Em 2012, uma das maiores manifestações de sempre contra a TSU forçou um recuo pontual do Governo, mas não impediu o ajustamento mais amplo, as medidas estruturais e a disciplina fiscal que se seguiram. A rua teve impacto num detalhe, mas não no essencial. E pouco depois, o ciclo político confirmou que o efeito da manifestação foi mais simbólico que real. Em França, o exemplo é ainda mais evidente: anos de protestos dos “coletes amarelos” não impediram a reforma da idade da reforma aprovada por Macron. Geraram caos, violência e prejuízo económico — mas não produziram o resultado político pretendido. O Estado democrático, quando decide agir com firmeza e coerência, prevalece sobre a pressão da rua.

O ruído é grande, mas a substância é pequena. Em Portugal, os protestos contra a privatização dos CTT não reverteram a operação. As marchas pela escola pública não travaram o processo de municipalização parcial. As greves no setor da saúde não impediram múltiplas reformas na organização hospitalar. Até a contestação contra a carga fiscal raramente produziu resultados concretos — os impostos continuaram a subir por via indireta, sem que as manifestações tivessem força material para os travar.

A razão é simples: a rua só parece poderosa quando encontra um governo com medo. O seu poder é contingente, não estrutural. Vive da hesitação política, não da legitimidade democrática. E é por isso que as cedências são tão destrutivas. Sempre que um governo reformista cede, reforça a perceção de que compensa bloquear, ameaçar, parar, protestar. Cria-se uma espécie de “prémio à agitação”, um incentivo perverso que multiplica futuras mobilizações, mesmo quando as causas são difusas ou pouco fundamentadas.

Os custos desta lógica são reais e acumulados:

  • Perda de credibilidade internacional, essencial para investidores e rating agencies;
  • Instabilidade regulatória, que cria incerteza e trava inovação;
  • Rigidezes estruturais que perpetuam baixa produtividade;
  • Erosão da autoridade do Estado, que passa a reagir em vez de liderar;
  • Multiplicação de chantagens futuras, um recuo hoje cria um claro caso de risco moral: incentiva sindicatos e grupos organizados a repetir o bloqueio amanhã, porque aprendem que a pressão compensa.

A Ciência Política recorda-nos que a democracia representativa foi criada precisamente para evitar que a política fosse capturada por emoções momentâneas e grupos vocais. O Parlamento existe para deliberar racionalmente; o Governo existe para conduzir o país; os eleitores escolhem programas, não slogans gritados à porta de ministérios. A rua não tem mandato, não tem responsabilidade orçamental, não é escrutinada, não responde pelas consequências das suas exigências. A rua representa interesses próprios, não o interesse geral. Representa pressão, não representação. Representa ruído, não racionalidade. E isso não é um problema — desde que nenhum governo a trate como se fosse outra coisa.

O poder da rua é, na verdade, uma forma de captura do Estado por atores que conseguem impor custos sem carregar responsabilidades. É uma externalidade negativa de natureza política: beneficia quem protesta, prejudica quem trabalha, investe e paga impostos. E quando um governo liberal se deixa capturar, deixa de ser governo — passa a ser administrador do medo, gestor da pressão, intérprete de reivindicações corporativas.

As manifestações produzem emoção, mas não soluções, criam ruído, mas não reformas, reforçam posições corporativas, mas não o bem-estar coletivo. Um governo reformista que cede transforma-se num governo sem norte. E quando isso acontece, o país perde, porque as reformas que poderiam melhorar produtividade, crescimento e rendimento ficam bloqueadas pela lógica do megafone. A rua pode protestar. Deve protestar. É parte de uma democracia plural. Mas governar é outra coisa. Governar é resistir ao mito do “poder” da rua e reafirmar que o verdadeiro poder — o poder que transforma — não vem do ruído, vem da coragem de decidir e efetivamente reformar, sem medo.

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