A vida difícil de duas Marias

As famílias portuguesas têm menos rendimento e pagam os produtos mais caros do que as famílias espanholas, mas o governo do seu país recusa-se a baixar o IVA sobre bens que são essenciais.

Os governos são eleitos para servirem as populações e as suas políticas destinam-se a melhorar a vida das pessoas. E há alturas em que as populações precisam do apoio do resto da sociedade, apoio que é prestado pelos governos enquanto eleitos por essa mesma sociedade.

As vidas que apresento são as de duas Marias que precisam de ajuda da sociedade, ou seja, de que os seus governos tomem algumas medidas necessárias. Ambas constituíram família com o seu marido e têm um filho. A sua principal preocupação é garantir que nada lhes falte.

Maria P reside e trabalha perto da fronteira do lado de Portugal. Ela e o marido trabalham arduamente e ganham pouco mais do que o salário mínimo, 818€ por mês cada um. Vivem felizes, mas preocupados pelas crescentes dificuldades que sentiram ao longo de 2022.

Estão apreensivos relativamente a 2023, pois não sabem o que poderá acontecer. Os preços cresceram assustadoramente em 2022 e a mensalidade do empréstimo para comprar casa que conseguiram realizar com a mãe como fiadora está também a aumentar. O preço do arroz cresceu 84%, o leite meio gordo e a cenoura 42%, a bolacha Maria 39%, a batata 35%, o açúcar 40%, a pescada 75% e a alface 46%. A taxa de juro do empréstimo subiu, o que levou a um aumento de 22% na mensalidade.

Para poupar deixaram de beber cafés ou a ocasional cerveja fora de casa. Levam consigo o almoço para o trabalho porque não têm condições de comer fora, “esticando” ao máximo as sobras do jantar do dia anterior. Apenas nos dias excepcionais, em que o filho ou um dos pais tem de ir ao médico ou tratar de alguma burocracia, comem uma sandes num café para enganar a fome, mas mesmo isso está a tornar-se incomportável.

Maria E reside e trabalha perto da fronteira do lado de Espanha e conhece Maria P. Ela e o seu marido também trabalham arduamente e ganham pouco mais do que o salário mínimo, 1.160€ por mês cada um. Vivem felizes, mas cada vez mais apreensivos dadas as dificuldades com que se defrontaram em 2022.

Os preços aumentaram, e apesar da alimentação essencial ser relativamente acessível em Espanha (onde muitos bens são mais baratos do que em Portugal), foram os alimentos que costumam comprar que registaram o maior crescimento dos preços. Para além dos alimentos também a energia, os transportes e outros bens de que não podem prescindir aumentaram de uma forma aterradora.

O tempo que perdem diariamente para se deslocar para os respectivos locais de trabalho também parece ser cada vez maior. Quando não há atrasos, há greves. Quando não há greves, há problemas com veículos ou com o material circulante. A refeição do meio da manhã já foi limitada fortemente por falta de dinheiro. E a ceia de Natal foi uma “sombra” do que tinha sido em anos anteriores.

As duas Marias estão perante dificuldades similares, mas há uma diferença substancial: o rendimento anual da família da Maria E é muito superior ao da família de Maria P. A família de Maria E recebe anualmente cerca de 32.500 € e a de família de Maria P 22.900. Esta diferença de 9.600 € é muito relevante para a vida das duas famílias e mostra como as dificuldades que Maria P enfrenta são significativamente maiores.

Se retirarmos as contribuições para a Segurança Social e o elevado nível de impostos que os governos dos dois países lhes impuseram, e que representam um pouco menos de um terço do seu rendimento, a diferença continua a ser muito marcante. A família de Maria E teve um rendimento disponível anual de 22.736 € e a de Maria P de 16.033 €, ou seja, uma diferença de 6.703 € ou um pouco mais de 550 euros por mês.

Em 2022, este rendimento revelou-se muito insuficiente para que pudessem ter a vida calma por que ambicionavam. A inflação nos dois países “disparou” ao longo do ano e o efeito prático foi uma perda muito significativa do poder de compra.

Em Espanha, Maria E a sua família perderam 12% do seu rendimento disponível com o aumento verificado nos preços da alimentação, dos transportes, da energia ou da habitação. Em termos práticos, viram o seu rendimento anual real reduzido em 2.747 € e dos 32.500 € que ela e o marido receberam em 2022, apenas cerca de 20.000 € puderam ser usufruídos, sendo o restante afectado pela inflação e entregue à Coroa como imposto.

Em Portugal, Maria P e a sua família perderam ainda mais, pois viram “desaparecer” 17,3% do seu rendimento disponível por via da inflação. Por outras palavras, o que podiam comprar com o já “magro” rendimento anual de 16.033 € permitiu-lhes apenas adquirir o equivalente ao que poderiam ter adquirido em 2021 com 13.264 €, uma perda real de rendimento de 2.770 €. Este aumento do custo de vida deveu-se à subida dos preços dos alimentos, da energia e de outros bens, e também da taxa de juro do crédito à habitação.

Em termos práticos, o trabalho árduo que Maria P e o seu marido realizaram ao longo do ano e pelo qual deveriam ter recebido 22.900 €, transformou-se em menos de 13.300 € por via dos impostos e da inflação, uma perda de 42% do rendimento legitimamente ganho com o esforço de ambos.

Esta diferença tão grande entre os rendimentos reais disponíveis das famílias de Maria P e Maria E (cerca de 13.300 € e 20.000 €) deveria levar o governo do país da primeira a tomar ainda mais medidas para aliviar as dificuldades sentidas. Apesar de poder fazer muitas coisas para atenuar a diferença, o governo do país de Maria P está no poder desde 2015 e não tomou qualquer decisão estrutural que atenuasse a diferença face a Maria E.

Mas mesmo sem ter nada feito sobre os problemas estruturais do país de Maria P, o governo deveria ter tomado algumas medidas concretas que a ajudasse, e ao marido e ao filho, a ultrapassar este período muito difícil da sua vida. Mas a única opção foi enviar-lhe dinheiro em dois donativos como se de uma “esmola” se tratasse, no total de 540 €.

O problema é que esse valor fica muito aquém dos 2.769 € que a família perdeu em 2022, para além dos elevados impostos e contribuições de 6.871 € que foi obrigada a entregar aos cofres do Estado. Maria P bem se questiona porque é que tem de pagar tantos impostos quando a sua família está a passar enormes dificuldades, mas nunca ouve uma resposta convincente. Mais espantada fica quando lê que o governo arrecadou 7.000 M€ a mais por causa da inflação e que não os devolve aos portugueses.

Maria P percebe que a situação se tenderá a agravar ainda mais quando lê que a inflação no seu país em Dezembro de 2022 foi quase o dobro da verificada no país vizinho. Esta diferença deixa-a mais ansiosa com o ano que agora começa e não percebe porque é que do seu lado da fronteira não acontece o mesmo e o crescimento dos preços não baixa.

A amiga espanhola explica-lhe que eliminaram o IVA sobre os produtos alimentares que compra e baixaram o que incide nas despesas de energia, pelo que os preços deixaram de crescer tão depressa. E pergunta a Maria P porque é que no seu país não fazem também o mesmo.

Maria P já viu dois dos seus sobrinhos saírem do país para terem uma vida condigna e por isso sabe que não há vontade do governo em fazer o que deve para os ajudar. Sabe também, pois já o leu, que a eliminação do IVA sobre os alimentos essenciais reduziria a perda da sua família em mais de 400 € e evitava as frequentes deslocações ao outro lado da fronteira para fazer compras. Apesar disso tudo, não desanima. E fica um pouco mais animada quando a sua amiga Maria E a ajuda, indicando-lhe onde pode comprar os produtos mais baratos do seu lado da fronteira.

A realidade de Maria P é a realidade portuguesa e qualquer comparação com os nossos vizinhos espanhóis é uma pura ilusão. As famílias portuguesas têm menos rendimento, pagam os produtos mais caros e sofreram mais os efeitos negativos da inflação do que as famílias espanholas, mas mesmo assim o governo do seu país recusa-se a baixar o IVA sobre bens que são essenciais para a sua vida como a alimentação.

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