A virtude violada

A municipalização da Carris e o recorde na dívida pública dizem-nos muito sobre a última década. A dívida gere-se, não se paga. A economia é comezinha. O primado da política, sempre.

A propósito da municipalização da Carris, afirmou há dias o senhor primeiro ministro [que] “esta empresa não deve ser um produto financeiro. Deve prestar um serviço público. Antes, tinha de produzir EBITDAS, e não transportar pessoas. Mas a função primeira é de ser uma empresa para servir as pessoas. A natureza pública garante que a função não é desvirtuada”. Em dia de festa, foi um discurso eloquente do senhor primeiro ministro, sem dúvida. Foi um dia de campanha. Mas enquanto António Costa discorria sobre a Carris, o Banco de Portugal, quase que em simultâneo, divulgava os números mais recentes da dívida pública portuguesa: 133,1% do PIB, 244 mil milhões de euros de dívida pública – advertia outro Costa, Carlos Costa.

Os dois anúncios dizem muito quanto à evolução portuguesa nas últimas décadas. Sob os auspícios dos amanhãs que cantam. Gastando o que se tem e o que se não tem. Engendrando esquemas de desorçamentação e de dissimulação. Nos cânones da política portuguesa, a dívida pública é matéria lateral. A dívida gere-se, não se paga. Foi assim que nos ensinaram! A economia é comezinha. O primado da política, sempre. Saque-se o contribuinte. Ajoelhe-se, ó pobre súbdito. O soberano sabe o que é melhor para si. Encavalitemo-nos nas gerações futuras porque estas beneficiarão da obra feita. Viva Portugal! Ora, três resgates depois já sabemos ao que isto nos conduz: conduz-nos ao próximo resgate. À função pública desvirtuada. Há que transportar pessoas? Pois claro que sim. Desde que não à falência.

A municipalização por decreto da Carris beneficia os seus utentes, uma minoria, prejudicando os não utentes, a maioria. Aos segundos cabe ficar com o passivo histórico. São 800 milhões de euros, inscritos no último relatório e contas que se conhece à empresa, mas que é de 2014. Um exemplo de transparência. Na prática, cada português não residente na cidade de Lisboa suportará 80 euros de um serviço que não utilizou.

Não haverá protestos. O País respira tranquilidade, assegura-nos o primeiro ministro. E 80 euros não dariam para pagar uma hora de advogado, quanto mais dez anos de tribunal. É assim que (também) se chega aos 244 mil milhões. Entretanto, em Lisboa, milhares de votos conquistados. E na Carris dívida a zero. A dívida que, entretanto, se tomar há de ser descarregada noutro contentor. Num futuro longínquo. O resto do País que (se) aguente. Pode ser que um dia chegue a sua vez. É dividir para reinar.

A oferta de bens e serviços públicos costuma encontrar razão nas falhas de mercado. Mas existe outra justificação porventura mais prosaica: é assim que se justifica a própria razão de existir do Estado. Em Democracia, a relação entre os cidadãos e os políticos deveria ser uma relação entre o principal (cidadão) e o agente (político). Não é que isto suceda muito em Portugal. Porém, é o que seria de esperar. E, portanto, numa sociedade decente, facultar-se-ia simultaneamente informação sobre os resultados da oferta pública e também sobre o custo do seu fornecimento. Permitir-se-ia ao cidadão uma decisão (mais) racional, entre benefícios e custos marginais. Mas não. Ao não proporcionar nada disto, e conduzindo os assuntos públicos na opacidade, o Estado promove a indiferença e a ignorância dos cidadãos como escolhas racionais. Naturalmente, 244 mil milhões de euros de dívida pública não acontecem por acaso.

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