Argentina: um milagre chamado Milei?

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 10:00

As novas políticas económicas, desde dezembro de 2023, têm contribuído para a estabilização da economia, incluindo a desaceleração da inflação e a normalização relativa da taxa de câmbio.

O desempenho favorável do principal índice acionista de Buenos Aires, o Merval, desde o início do ano, reflete indicadores económicos globalmente positivos. Desde o início de 2024, têm sido registados excedentes orçamentais sucessivos, e a inflação mensal desacelerou para 2,7% em outubro passado, após ter atingido um máximo de 25,5% em dezembro do ano passado. Além disso, a balança comercial da Argentina acumula excedentes em todos os meses deste ano, e a dívida externa total já começou a diminuir. A perceção de risco do país também melhorou significativamente, com os credit default swaps (CDS) a cinco anos a descerem para cerca de 600 pontos-base, quando há um ano estiveram próximo de 8.000 pontos-base. O índice de risco da dívida soberana argentina caiu consistentemente à medida que recuam os receios de incumprimento. Outro dado que reflete esta recuperação é a valorização da obrigação do Tesouro da Argentina com vencimento a 9 de julho de 2035, com um cupão de 4,125% (ARGENT 4,125 07/09/2035 Govt). Esta obrigação, considerada a mais representativa da maturidade a 10 anos, quase triplicou de valor desde outubro do ano passado, passando de 24% para os atuais 63,5%.

Contudo, as políticas económicas aplicadas têm impacto no curto prazo. O PIB argentino contraiu ao longo de 2024, mas as projeções para 2025 são mais otimistas. O JP Morgan destaca o potencial impacto positivo das reformas económicas lideradas por Javier Milei, incluindo a dolarização da economia, cortes nos gastos públicos e a redução da intervenção governamental. Segundo o Statista, plataforma alemã especializada na recolha e análise de dados, o PIB da Argentina deverá crescer 5% em 2025. Este cenário alimenta um otimismo renovador por parte dos investidores, embora acompanhado de desafios. Atualmente, 52,9% da população argentina, o equivalente a 15,7 milhões de pessoas, vive abaixo do limiar da pobreza, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec).

Embora as reformas económicas sejam vistas como um passo necessário para a estabilização macroeconómica, o impacto das políticas de austeridade tem agravado a crise social. A pobreza tem continuado a crescer como resultado direto dos cortes nos gastos públicos e da contração económica. Hoje, mais da metade da população argentina enfrenta condições de pobreza, segundo o Indec, destacando as consequências sociais graves das políticas aplicadas para combater o colapso orçamental. Este é o paradoxo das reformas: enquanto os mercados mostram otimismo, muitos argentinos sofrem o peso das medidas de ajustamento. Espera-se que atual austeridade seja sinónimo de crescimento económico no futuro. Espera-se que, no médio e longo prazo, estas medidas tragam benefícios económicos, aumentando o bem-estar das pessoas – o objetivo central da ciência económica. O crescimento deverá emergir como resultado da reorganização estrutural da economia. No entanto, o sucesso destas reformas dependerá de um equilíbrio delicado entre o rigor orçamental e a capacidade de aliviar a crescente pressão social.

Devido às elevadas taxas de juro pagas pelo Tesouro argentino, o saldo das contas públicas é frequentemente apresentado em duas perspetivas: primária e financeira. Entre janeiro e outubro de 2024, o saldo primário foi positivo em cerca de 1,8% do PIB nominal, equivalente a 11.586 milhões de dólares, enquanto o saldo financeiro apresentou um superávite de 0,5% do PIB nominal, cerca de 2.965 milhões de dólares. Este resultado é particularmente significativo, pois a Argentina não registava um saldo positivo das contas públicas desde 2009. Este excedente orçamental representa uma oportunidade crucial para restaurar a confiança dos investidores e do povo argentino nas políticas económicas do país.

A Argentina registou uma aceleração no processo de desinflação. O índice de preços no consumidor (IPC) anual caiu de 190% para 25%. Quando Javier Milei assumiu o governo, a inflação dos preços no produtor era de 54% e agora está em 2%. Esta mudança tem impulsionado a transição do efeito crowding out (maior financiamento ao Estado, limitando o setor privado) para o efeito crowding in (mais crédito para o setor privado). Em julho de 2023, o setor público absorvia 50,1% do crédito concedido pelos bancos argentinos, mas em julho de 2024, esse percentual já havia caído para 43,1%.

O governo também anunciou planos para facilitar a exploração dos campos de gás e petróleo de Vaca Muerta, enquanto a agência de rating Fitch deverá rever em alta a classificação de crédito da Argentina, passando de CCC para CC, refletindo maior confiança na capacidade de pagamento da dívida soberana. A Fitch Ratings destacou ainda o repatriamento de mais de 18 mil milhões de dólares devido à amnistia fiscal e a criação de novas vias para investimento estrangeiro.

Apesar dos avanços, a taxa de participação da força de trabalho na Argentina permanece inferior a 50%, uma situação paradoxal num país com uma população jovem, mas compreensível numa economia da América Latina, num contexto de uma economia informal significativa. É preciso trazer as pessoas que trabalham na economia informal para a economia oficial. É preciso modernizar. É preciso mais educação e ensino superior. Curiosamente, a taxa de desemprego na Argentina é de 7,6%, com apenas 13 milhões de pessoas empregadas, numa população de 47 milhões. Comparativamente, Espanha, com uma população semelhante (48,5 milhões), tem quase 22 milhões de trabalhadores ativos, apesar de apresentar uma taxa de desemprego superior (11,5%) e uma taxa de participação de quase 60%, ainda assim baixa para uma economia avançada.

Com um PIB nominal de cerca de 650 mil milhões de dólares, a Argentina ocupa hoje a 23ª posição mundial, muito distante do top 10 onde figurava na primeira metade do século XX. Atualmente, o seu PIB é mais de duas vezes e meia inferior ao de Espanha.

A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA pode beneficiar a Argentina sob a liderança de Milei, dado o alinhamento ideológico entre ambos. Uma maior cooperação entre os países poderá fortalecer as relações bilaterais e facilitar acordos comerciais. Este cenário também pode estimular o interesse dos investidores americanos, impulsionando setores estratégicos da economia argentina. No entanto, as políticas protecionistas dos EUA representam um desafio, dado que a Argentina é concorrente no mercado agrícola global.

Mas poderá a política protecionista de Trump afetar a Argentina, um concorrente agrícola dos EUA? No passado dia 14 de novembro, Milei visitou Trump na Flórida, tornando-se o primeiro líder estrangeiro a encontrar-se com o presidente eleito após a sua vitória. Durante a visita, discutiu-se a renegociação da dívida da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), tendo Trump oferecido apoio para melhorar as condições de pagamento. Desde o início do ano, o “país das pampas” beneficia de excedentes gémeos, orçamental e comercial, enquanto os EUA têm défices gémeos.

Entre janeiro e outubro de 2024, a balança comercial acumulou um excedente de 15.955 milhões de dólares, cerca de 2,5% do PIB nominal argentino, sustentado pela força do setor agroindustrial. Este foi o 11º mês consecutivo de saldo positivo no comércio externo.

As expectativas de que a vitória de Javier Milei tivesse um impacto positivo nas bolsas chegaram antes mesmo de sua eleição. Milei venceu as eleições presidenciais na Argentina em 19 de novembro de 2023. Após a reabertura do mercado financeiro em 21 de novembro, uma terça-feira, o principal índice da bolsa de Buenos Aires, o S&P Merval, registou uma valorização de 29% em dólares. Até ao final da semana, a 24 de novembro, o índice acumulou um ganho total de 41%, refletindo o otimismo dos investidores face às mudanças económicas esperadas sob a sua liderança.

Este comportamento de mercado, no entanto, não foi inédito. Na primeira metade de outubro de 2023, o S&P Merval já tinha subido cerca de 47% em dólares entre os dias 4 e 17. Esta valorização esteve diretamente associada à perceção de que Milei, então candidato, tinha grandes possibilidades de vencer as eleições e implementar reformas profundas no país. Entre as propostas que mais atraíram os investidores destacaram-se a privatização de empresas públicas, a abertura da economia ao investimento externo e a redução da intervenção do Estado.

O momento decisivo desta trajetória de valorização ocorreu durante o debate presidencial em 1 de outubro de 2023, onde Milei se destacou claramente dos adversários, consolidando a sua posição de favorito. Poucos dias depois, a 4 de outubro, as sondagens já o apontavam como provável vencedor das eleições e até indicavam a possibilidade de vitória na primeira volta, inicialmente agendada para 22 de outubro. Este cenário de antecipação por parte dos mercados foi determinante para a valorização significativa do Merval, traduzindo a confiança dos investidores na transformação económica que Milei prometia.

Este conjunto de acontecimentos evidencia uma forte ligação entre as expectativas dos eleitores e o desempenho dos mercados financeiros. As políticas anunciadas por Milei geraram um impacto direto na confiança dos investidores, refletido no comportamento das bolsas. Contudo, estas reformas tiveram um custo no curto prazo. Sob a liderança de Milei, a economia argentina contraiu 5,1% no primeiro trimestre de 2024 e 1,7% no segundo trimestre, resultado das medidas de austeridade aplicadas.

Apesar das dificuldades iniciais, a redução do risco político e a melhoria dos ratings internacionais da Argentina têm sido fundamentais para manter o otimismo. As novas políticas económicas, desde dezembro de 2023, têm contribuído para a estabilização da economia, incluindo a desaceleração da inflação e a normalização relativa da taxa de câmbio.

Em suma, a tendência de melhoria mantém-se, sustentada por diversos indicadores macroeconómicos que justificam a continuidade da aposta na economia da Argentina. Apesar de os riscos políticos serem uma constante – especialmente num país onde a população enfrenta austeridade e parte da elite anterior e eventuais lobbies se sentem prejudicados, podendo tentar influenciar o rumo das reformas, o panorama geral permanece positivo.

Os principais perigos podem vir do exterior, como uma eventual desaceleração da economia global, o enfraquecimento da economia dos EUA ou o agravamento das tensões geopolíticas. A valorização do Merval já reflete, em grande medida, o otimismo de um cenário favorável e a consistência de melhoria nos indicadores económicos. No entanto, se esta trajetória se mantiver, poderá ainda haver espaço para novas surpresas positivas.

O índice continua a apresentar potencial de crescimento, sobretudo se as reformas económicas continuarem a ser implementadas com sucesso. Pode ser uma oportunidade ainda interessante, mas é pertinente uma análise cuidadosa, considerando os riscos associados, tanto internos como externos.

A perceção de risco tem diminuído significativamente desde outubro de 2023

 

 

 

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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