As contradições na geringonça e o super-homem de Nietzsche
José Miguel Júdice analisa as declarações aparentemente contraditórias entre António Costa e Santos Silva e conclui que, mesmo sem combinação prévia, disseram o que queriam dizer.
Por vezes a política é mais difícil de entender do que a arte contemporânea. Aqui, tenho procurado explicar ou descodificar o que nos é dado presenciar. Mas nem sempre é fácil…
António Costa e Santos Silva, a contradição?
O caso mais recente é a contradição patente e excessiva entre o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros sobre o futuro da “geringonça”. Dois dos mais experientes políticos portugueses, que conhecem bem o que pensa o outro, não deviam agir assim, parece evidente.
O ministro disse, numa entrevista, que a renovação da “geringonça” deve exigir consenso sobre a política externa e sobre a política europeia. No dia seguinte, o primeiro-ministro disse que a “geringonça” devia ser renovada com o que há e não pedir mais do que é possível: “o que corre bem, não deve ser perturbado nem interrompido”. Porquê a (aparente) contradição?
António Costa e Santos Silva, a mesma luta?
Várias teses podem ser avançadas:
- Apesar da sua experiência, o ministro disse o que não queria dizer, pelo que foi um lapso.
- Devido à sua grande experiência, o ministro disse o que queria dizer, posicionando-se como uma espécie de líder para a hipótese do fracasso de futuras negociações, e apanhou o primeiro-ministro de surpresa.
- O ministro disse o que queria dizer, mas tudo foi combinado com o primeiro-ministro para reforçar a força negocial do PS à esquerda, para não correr o risco da negociação vir a ser feita sem nada a propor para ser recusado, o que dizem as regras é má tática negocial.
- O ministro disse o que queria dizer, mas fê-lo porque vai ser cabeça de lista do PS nas eleições europeias de Junho de 2019, e por isso tem de se demarcar dos aliados.
- O primeiro-ministro está a apostar na maioria absoluta e, se a obtiver, o que agora disse Santos Silva será um sinal do aumento das exigências a fazer aos parceiros para negociar.
- O que não é verdade é que um falasse do futuro e outro do presente. É óbvio que ambos falaram do futuro à luz do presente…
Só o ministro dos Negócios Estrangeiros poderá dizer qual destas teses é a correta, e talvez nem ele próprio consiga…
Nada de novo à esquerda, mas nada fechado também
Por tudo isso, é melhor, à cautela, avançar a minha tese resumindo alguns aspetos essenciais:
- Como venho dizendo há muitos meses, António Costa quer a maioria absoluta, acha isso essencial, vai lutar por ela e espera ter sucesso.
- Mesmo que o não consiga (e o partido populista que Pedro Santana Lopes vai lançar é uma excelente ajuda), tem a certeza de que vai conseguir fazer maioria absoluta apenas com o Bloco de Esquerda e que, ao menos nessa situação, o PCP não vai querer repetir a experiência sem que o PS lhe dê mais do que quer e pode dar.
- António Costa sabe que conseguirá meter o BE no bolso como em 2007 em Lisboa o conseguiu fazer a Helena Roseta e José Sá Fernandes, que dele disseram cobras e lagartos, tornando-os rapidamente em afluentes que apenas engrossaram o caudal.
- Em todo o caso, o BE está tão ansioso em ir para o Governo (o que nada tem de censurável) que não será por causa da União Europeia e da NATO que o recusará.
- Em situação alguma Costa fará uma aliança com o PSD, e vai fazer campanha nesse pressuposto que é condição sine qua non para que o seu partido não tenha o destino de outros congéneres europeus.
- Mas para ganhar a maioria, Costa – como venho dizendo – com as credenciais de esquerda que tem, como nenhum líder do PS jamais conseguiu tão fortes – vai posicionar-se e falar mais para o centro.
Em função de tudo isto, acho que foi tudo combinado. Ou melhor, mesmo que o não fosse, conhecem-se tão bem que mesmo sem combinarem antes, afinal disseram o que diriam se fosse combinado.
PCP e BE são inocentes úteis?
Mas isto dito, como vão reagir o PCP e o BE? De modo diverso, pois têm estratégias distintas, em primeiro lugar.
Mas em qualquer caso, vão tudo fazer para demonstrar que o PS é um partido perigosamente centrista, tentando tirar-lhes votos à esquerda, ainda que com isso ajudem de graça a estratégia de Costa. É como o escorpião, não conseguem resistir…
É nesse contexto que a aprovação do Orçamento em novembro vai ser tão decisiva. Apesar do pobre Rui Rio ainda acreditar no bloco central e por isso nada ter ouvido, o PS falou a sério: O Orçamento só pode ser aprovado no âmbito da geringonça. Mas, como digo há mais de um ano, e outros agora também admitem (e Jerónimo há dias perguntado, não negou), o PCP pode abster-se e apesar disso o Orçamento passar.
Se assim for, o PS e o BE dificilmente poderão esconder que vão formar governo e a maioria absoluta vai jogar-se aí: será que o centro vai tentar ajudar o PS a “livrar-se” do BE? Ou será que a esquerda vai querer “reforçar” o BE para obrigar o PS a negociar com ele e sem maioria? Não creio que neste momento se possa ir mais longe. Voltarei ao tema, quando for possível.
Marcelo, o Ubermensch de Nietzsche
A um tema, em todo o caso vou ter agora de voltar. A forma como o Presidente da República tenta condicionar a vida política, com desrespeito por algumas regras essenciais do regime constitucional, agindo como se fosse apenas mais um comentador, ainda que o melhor de todos…
Nietzsche, se voltasse à terra, veria em Marcelo Rebelo de Sousa que finalmente se historizava a encarnação do “ubermensch” (super-homem e além-do-homem, ao mesmo tempo), numa nova fase da evolução humana, alguém que se revela finalmente estar para além do bem e do mal.
Não há, realmente, outra explicação para a verdadeira impunidade com que vemos o Presidente destilar para os “media” as suas intenções e receios em relação à Direita. Desta vez, foi a preocupação com que Santana Lopes avance com o seu partido e alegadamente torne ainda mais difícil que a Direita possa derrotar a Esquerda nas eleições de outubro de 2019.
Nietzsche, se bem me lembro, achava que a tendência seria para que o super-homem lutasse contra almas servis habitadas por uma “moral de escravos”. E, realmente, o que se está a passar nesta matéria parece saído do pensamento do filósofo.
Só isso explica que a Esquerda não proteste e que a Direita se resigne a ter o Presidente a espreitar-lhe por cima do ombro e a condicioná-la.
É evidente que a única real preocupação de Marcelo, que o leva a estas conversas “off the record” com jornalistas, não são os problemas da Direita, mas que (dividindo-a um pouco mais) Santana Lopes ajude o PS a ter maioria absoluta. Mas nada disso altera o que afirmo. O País ama Marcelo, o amor é retribuído, as férias serão em Pedrógão, o super-homem nietzschiano chegou. O que isto tem a ver com democracia, separação de poderes, papel estratégico do Presidente da República, é outro tema. Mas quem somos nós para duvidar do sentido da História?
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