As oito fragilidades do orçamento
A proposta de orçamento para 2021 tem um conjunto de fragilidades, desde o crescimento económico às receitas e despesas previstas, que ameaçam a sua execução.
A proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2021, como escrevi aqui no ECO, sofre de uma enorme incerteza, fruto da situação pandémica que vivemos desde março. Mas essa incerteza não nos deve fazer ignorar ou escamotear as grandes fragilidades que o OE evidencia.
A primeira fragilidade tem a ver com o crescimento económico.
Sim, eu sei que vão dizer que está em linha com as previsões das entidades nacionais e internacionais. Mas, por um lado, a situação pandémica está a agravar-se em toda a Europa e em Portugal de forma dramática. Isso pode obrigar à revisão das estimativas em baixa, com maior recessão em 2020 e uma recuperação mais lenta em 2021. Isso terá, naturalmente, um impacto significativo no desemprego e na vertente orçamental.
Por outro lado, como bem refere o Conselho de Finanças Públicas (CFP), a composição do crescimento em 2021 apresentada pelo Governo difere das restantes instituições, como referi isso na minha análise. Em 2020, o Governo estima uma quebra do consumo privado menor que as outras entidades e, em 2021, estima um crescimento do consumo público maior que as restantes previsões. Ou seja, em 2020, a esperança do Governo está no consumo privado e, em 2021, estará no consumo público.
A segunda fragilidade está nas previsões de défice para 2020.
O Governo estima um défice nominal de 7.3%. Mas para isso, como vimos, conta com uma quebra do PIB nominal de “apenas” 7% (menos 8.5% de quebra real e 1.5% de deflator). Na passagem do saldo de 2019 (superavit de 0.1%) para o défice de 2020, o Governo estima um impacto da crise na receita fiscal e contributiva de 3% PIB. Isso significa que o Governo assume que a “semi-elasticidade” se mantém em 0.5 (a “semi-elasticidade” mostra o impacto no défice por cada redução/aumento de um ponto percentual do PIB –- neste caso, uma subida/descida do PIB em 1 p.p. reduz/aumenta o défice em 0.5).
Isto tem dois problemas:
- O primeiro, como escrevi aqui em abril e maio, não é líquido que uma quebra do PIB desta magnitude (de 8.5% ou de 10%) não tenha alterado a magnitude deste efeito.
- O segundo é que se o PIB cair 10%, isso significa, mesmo mantendo os 0.5 de correlação, que o défice se agrava em quase mais 1% do PIB face às atuais estimativas do Governo.
Adicionalmente, como veremos, a previsão do défice para 2020 (e para 2021) está assente numa previsão de receita (fiscal, contributiva e outra receita) e de despesa que me parece muito otimista.
A terceira fragilidade está na consolidação orçamental para 2021.
Em 2020, o défice nominal será de 7.3%. Naturalmente há aqui um conjunto de despesa resultante da Covid-19 e que é considerada “one-off” (quer na saúde, quer os 1.2 mil milhões para a TAP), que vale 1.1% do PIB. Pelo que o défice sem “one-offs” ficará, nas previsões do governo, em 6.2%.
Depois, para 2021, o Governo estima um défice nominal de 4.3%. O Governo refere que tem “one-offs” do lado da receita de 0.5% (a recuperação de uma garantia do empréstimo à Grécia em 2010, que já há vários anos estava prevista acontecer em 2021) e do lado da despesa tem 0.4% (medidas de apoio ao emprego e à retoma), tendo assim um saldo de “one-offs” de 0.1% que melhoram o défice. O Governo estima assim um défice sem “one-offs” de 4.4%.
Aqui discordo, porque se é verdade que existe 0.4% de medidas de apoio à recuperação, também existe o mesmo valor do lado da receita, por via do REACT (o programa de emergência Europeu). Da mesma forma que existem 500 milhões para investimentos públicos ligados ao Plano de Recuperação e Resiliência (ligados à bazuca), também existem 500 milhões do lado da receita (provenientes da UE).
Assim, do ponto de vista das medidas “one-off”, parece-me mais correto considerar-se um valor global de 0.5% que melhora o défice, colocando o défice sem “one-offs” de 2021 em 4.8%.
Isso significa que passamos de um défice sem “one-offs” de 6.2% para 4.8%, uma melhoria de 1.4 p.p. Mas se o PIB crescer, em termos nominais, de 6.3% (5.4% em termos reais mais 0.9% de deflator), isso deveria significar um efeito cíclico em torno de 3% do PIB. A razão pela qual o défice nominal só melhora 1.4 p.p. são as medidas de despesa. E nesse sentido é preocupante que algumas medidas de despesa que supostamente são para serem provisórias, para responder à crise social de 2021, muito provavelmente vão tornar-se rígidas e acrescer à despesa estrutural.
Basta ver que, nas contas do Governo, o défice estrutural passa de 3% em 2020 para 2.8% em 2021. Sucede que a redução da despesa com juros é de 0.3%. Ou seja, o saldo primário estrutural até se vai agravar em 2021. O saldo primário estrutural vai passar de -0.1% em 2020 para -0.2% em 2021. Mas se considerarmos que para 2021 o valor dos “one-offs” não é de 0.1% mas sim de 0.5%, então o saldo primário estrutural agrava-se de forma significativa. Passa dos -0.1% em 2020 para -0.6% em 2021.
A quarta fragilidade está relacionada com as previsões de receita.
O Governo prevê um aumento da receita do IRS face a 2019 em cerca de 40 milhões. Isto apesar do desemprego subir de 6.5% para 8.7% de 2019 para 2020. O Governo não dá nenhuma explicação no relatório do OE para esta estimativa. Mas, olhando para as previsões macroeconómicas, a explicação porventura assentará no aumento da remuneração média de 3.4%. Este valor afigura-se muito improvável. Basta ver que o CFP prevê apenas 0.7%. Por outro lado, em 2019, este aumento foi de 3.5%. Mas depois o próprio Governo reconhece (num anexo ao OE) que a remuneração dos empregados irá cair 0.5%.
A quebra de receita do IRC é também significativa. Passa de 6.3 mil milhões em 2019 para 4 mil milhões em 2020. Mas aqui afigura-se irrealista a subida da receita de IRC em 2021, em cerca de 1.1 mil milhões, passando para 5.1. É verdade que haverá alguma recuperação da atividade económica, mas as empresas que tiverem prejuízos em 2020 poderão deduzir esses valores aos lucros de 2021 (até 70% desse lucro). Um crescimento de 20% na receita de IRC em 2021 implicaria um crescimento de lucros das empresas muito significativo, para que, acomodando o efeito do reporte de prejuízos, os 30% de lucros taxados gerassem um valor tão elevado de IRC. E nem sequer há uma redução da despesa fiscal para 2021 que pudesse justificar este crescimento.
Também a receita de IVA se reduz muito significativamente em 2020 (menos 12%, cerca de menos 2 mil milhões, passando de 17.8 mil milhões para 15.8). O problema é que na crise de 2009, o IVA desceu cerca de 19%, quando nesse ano o PIB caiu “apenas” 3% e o consumo privado caiu “apenas” 4.2%.
A quinta fragilidade tem a ver com os dividendos.
A receita de dividendos da CGD é de cerca de 150 milhões (que o BCE pode impedir), bem como os 500 milhões para a TAP, que podem ser insuficientes dada a péssima decisão e condução do processo pelo Governo e pelo ministro Pedro Nuno Santos. O mesmo ministro que dizia que não haveria despedimentos na TAP, mas que entre março e o final deste ano irá mandar para a rua 1.600 trabalhadores. E parece-me evidente que o plano de reestruturação da companhia aérea, à semelhança da Lufthansa ou da Air France, será muito duro.
A sexta fragilidade é a receita das contribuições para a Segurança Social.
Em 2019, a receita foi de 18.4 mil milhões. Em 2020, a previsão do governo é de 18 mil milhões. Ou seja, com o “lay-off” que reduziu significativamente o rendimento de uma grande parte dos trabalhadores e com o desemprego a subir bastante, o governo prevê que a receita da TSU desça “apenas” 2.2%. Diga-se que no OE retificativo o Governo previa uma receita da TSU de 17.2 mil milhões. Agora há mais 800 M€ nessa previsão.
A sétima fragilidade tem a ver com as verbas para o subsídio de desemprego.
O desemprego em 2019 foi de 6.5%. O Governo agora prevê quase 9% em 2020 e cerca de 8% em 2021. As verbas para o subsídio de desemprego passam de 1.2 mil milhões de euros para 1.5 mil milhões. Mas como referi aqui na semana passada, a subida do desemprego pode ser substancialmente maior. As entidades nacionais e internacionais apontam para valores acima dos 10%. Isso colocará uma forte pressão na despesa.
A oitava fragilidade é que o Governo aposta em 2021 numa recuperação não assente em medidas e políticas, mas apenas assente no “poder de fogo da bazuca Europeia”.
Como disse várias vezes nos últimos meses, o Governo está à espera do “milagre Europeu”. O problema é que a “bazuca” vai demorar tempo a chegar. As verbas Europeias podem só chegar depois do verão de 2021. Entretanto a pandemia agrava-se. Novas medidas já foram tomadas e outras ainda mais restritivas podem vir a ser decididas. Enquanto as verbas Europeias não chegam, muitas empresas vão desaparecer, muitos postos de trabalho vão ser perdidos e muita riqueza vai ser destruída.
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