Brexit: pode-se sair da Europa mas é o cabo dos trabalhos…
Acredito mais num segundo voto parlamentar do que na tese do segundo referendo. Mas em geral tenho mais dúvidas do que certezas. O Brexit inaugurou com estrondo a era da imprevisibilidade ocidental.
Este é um dia que nenhum de nós esperava viver. Pela primeira vez um Estado-membro da União Europeia está de saída. Duas notas prévias. Há uns anos dizia-se que a União Europeia não tinha direito de secessão — ou seja um Estado podia aderir mas não podia rescindir. Em meios federalistas era comum esse ponto de vista. O Brexit prova que é possível e legal sair do clube.
Porém, também ficou muito clara outra lição dos factos. Há dois anos, quando aconteceu o referendo, os defensores do Brexit prometeram que tudo seriam facilidades e felicidades (em abono da verdade os remainers também mentiram: a catástrofe anunciada tão pouco se verificou). Ora, a negociação do ‘acordo sobre o desacordo’ provou abundantemente que sair é muito mais fácil de dizer do que de fazer. Se é verdade que o Brexit prova que um Estado membro pode abandonar a União, é igualmente cristalino que o abandono ‘dá o cabo dos trabalhos’, tem custos elevados e implica sacrifícios nas convicções isolacionistas. O emaranhado de constrangimentos e compromissos torna muito complicado o caminho de para a saída. Se isto é assim com a segunda economia da Europa — portanto, mais forte — imagine se o que sucederia com um Estado médio ou pequeno.
Foram 17 meses de negociação e a história ainda não acabou.
O que é bom para o Reino Unido e o que é bom para a União Europeia?
Comecemos pela conta do divórcio. O Reino Unido era o segundo contribuinte para o Orçamento da União. Pagava em tese cerca de 11,1% de contribuição, mas desde a senhora Thatcher e o seu famoso ‘I want my money back‘ a verdade é que os britânicos recebiam de volta uma espécie de cheque de retorno; na prática, o Reino Unido já só pagava uma parte da sua contribuição. Em todo o caso tenhamos a noção de que em termos permanentes — no futuro — os ingleses deixarão de pagar e por isso vai faltar verba no Orçamento europeu.
No entanto, a primeira fatura é pesada para os ingleses: o apuramento das responsabilidades do Reino Unido na saída anda a volta de 40 a 44 mil milhões de euros. Este ponto — distante dos 100 mil milhões de euros que chegaram a ser ‘ameaçados’ por fontes de Bruxelas — acabou por favorecer o acordo porque os ingleses deixaram claro que não pagariam se não se fechasse o entendimento.
Para a senhora May os pontos favoráveis são vários. O primeiro de todos: o Governo inglês fica com as mãos praticamente livres em matéria de imigração e até — depois do fim do período de transição — no que diz respeito à liberdade de circulação de pessoas. O Reino Unido escolhera no futuro quem deixa entrar e quem não deixa; ora, a questão da imigração e a rejeição dos ingleses em relação a imigrantes do Leste da Europa fez toda a diferença no Brexit.
Em segundo lugar, os britânicos ficam com uma liberdade quase total em termos de serviços. Não se deve esquecer que a economia inglesa é basicamente uma economia de serviços; ora não há praticamente referência ao futuro regime dos serviços na City e no UK. Esta surpreendente omissão — o acordo só visa mercadorias — é apenas compensada com os bons esforços para encontrar um regime de equivalências (similar ao ja têm o Japão e os EUA?) dos produtos financeiros da City com o mercado continental e vice-versa. Única interpretação possível : o UK prepara se para uma nova e agressiva desregulamentação destinada a proteger (com riscos) a sua competitividade.
Em matéria de liberdade de comércio, os ganhos britânicos são mitigados. Sim, é verdade que o Reino Unido vai poder fazer acordos de comércio e de investimento pelo mundo fora, incluindo, se for o caso, com os países da União Europeia. Mas esses acordos têm de respeitar certos princípios, pelo menos até ao final do período transitório: os princípios da União Aduaneira europeia.
E, finalmente, a questão da supremacia da lei britânica ou da lei europeia. Se ingleses tiverem de ir a tribunal por conflitos na relação com Bruxelas, vão a um tribunal inglês ou ao europeu? O acordo é híbrido nessa matéria. Há uma comissão paritária para seguir a execução do acordo; e há na instância seguinte uma sede de arbitragem, com árbitros nomeados tanto pelo Reino Unido como pela UE. Só em último caso, e se a matéria for de direito europeu, é que interfere o Tribunal de Justiça da União Europeia. Desse ponto de vista, há um certo face saving para o Governo May.
Do lado continental, a UE pode considerar satisfatórios vários pontos. Desde logo a União a 27 conseguiu proteger os direitos dos mais de três milhões de cidadãos europeus que vivem no Reino Unido: mas atenção, dos cidadãos europeus que estão atualmente no Reino Unido ou que vão chegar até ao final do período de transição.
A UE também consegue salvar o acordo de paz da Irlanda, que foi a questão nuclear nesta negociação. Sendo a Irlanda do Norte inglesa mas estando dentro da ilha que é a República da Irlanda, há realmente um estatuto diferente, porque Belfast fica não apenas na União Aduaneira, mas também dentro das regras do mercado interno. É o ponto mais frágil do acordo — nunca haveria soluções perfeitas porque a geografia é teimosa… — e é matéria a seguir com muito atenção, porque pode trazer muitos problemas. A tal ponto que a União Europeia impôs uma clausula defensiva em caso de inexistência de acordo pós-transição — para a Irlanda do Norte — prevendo o Reino Unido não pode deixar unilateralmente a União Aduaneira.
Mais importante : o acordo é satisfatório para o Governo inglês mas não é tão satisfatório que leve outros países a ter a mesma ideia ou seguir o mesmo caminho. E essa é uma das ‘linhas encarnadas’ que os negociadores do lado da UE tinham de proteger.
E agora? Uma coisa é um acordo entre a UE e o Governo britânico, outra coisa é um acordo entre o Parlamento britânico e o seu Governo…
Acredito mais num segundo voto parlamentar do que na tese do segundo referendo. Mas em geral tenho mais dúvidas do que certezas sobre o que se vai passar a seguir. O Brexit inaugurou com estrondo a era da imprevisibilidade ocidental tudo é possível na Câmara dos Comuns.
A Constituição inglesa não é escrita e é muito flexível. Pode haver no Parlamento não apenas um voto, mas dois, se circunstancias excecionais o exigirem. A senhora May pode até perder numa primeira votação e ganhar numa segunda; mas terá de fazer concessões. Por exemplo garantir que executará o Brexit até ao fim do período de transição, mas comprometer se a convocar eleições a seguir; ou até garantir que não será candidata dos conservadores à próxima eleição.
Porquê? Basta ver os números. Se a votação parlamentar fosse amanha (em princípio devera acontecer ate ao Natal) a senhora May perderia. Faltam lhe umas dezenas de deputados conservadores (menos do que se temia) e faltam-lhe ainda os lealistas da Irlanda do Norte (mais do que se pensava). A primeira-ministra só pode compensar isso com deputados do Partido Trabalhista. Tem-se falado pouco neste tema. No Partido Trabalhista parece haver alguns deputados que não querem entregar o poder ao senhor Corbyn — tal o grau de radicalismo de esquerda que representa — e que têm medo que um segundo referendo viesse a dar um resultado parecido com o primeiro. Nunca fiando ou nunca confiando…
Muita gente — continental — eu incluído gostaríamos que os ingleses retificassem. É possível mas ainda não é provável.
Não apenas pelo argumento democrático: sempre iria parecer que em democracia se aceitam os resultados apenas quando nos convém. Mas por um argumento que tem a ver com a reputação mundial dos britânicos. Imaginemos que os ingleses dizem ao mundo: ‘nós enganámo-nos’ e logo acrescentam: ‘nós não conseguimos viver sem a Europa’. O que é que as grandes potências deste mundo vão pensar dos ingleses? Seria como uma espécie de segunda queda do Império Britânico.
O caminho da senhora May daqui para a frente é pelo menos ta difícil quanto foi o caminho do Reino Unido para chegar ao acordo de ontem. Mas a verdade é que a senhora May tem sido subestimada com alguma frequência. Já era para ter caído mas ate agora aguentou e aguentou-se…
Nota: A opinião de Paulo Portas é publicada com base no comentário semanal no Jornal das Oito da TVI, ao domingo, que pode ver aqui em vídeo.
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