Construir uma economia de IA, em vez de esperar por ela
Uma estratégia nacional para a IA só o será de facto se for abrangente e integrada, articulando as várias dimensões e se estiver ancorada na visão que queremos para Portugal.
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Imaginemos a seguinte situação. Numa reunião do Conselho de Ministros, os governantes estavam prestes a aprovar a eliminação dos subsídios aos combustíveis fósseis num prazo de seis meses, com o objetivo de acelerar a transição energética. No entanto, o sistema de inteligência artificial (IA) consultivo apresentou uma análise preditiva com base em dados de consumo energético, mobilidade e indicadores sociais: previa um aumento médio de 12% no custo de vida nas zonas rurais, um acréscimo de 18% nos pedidos de apoio social em oito distritos do interior e uma quebra de até 25% no rendimento disponível de famílias dependentes de transporte privado. Além disso, simulava um risco elevado de instabilidade social. Com base nestes dados, o governo decidiu adotar uma abordagem mais faseada e compensatória, evitando impactos negativos e aumentando a eficácia da política pública.
Esta será potencialmente a realidade nos Emirados Árabes Unidos (EAU), a partir de 2026, onde foi recentemente anunciado que um sistema de IA será incluído como membro consultivo do Gabinete do Governo. O objetivo é apoiar a tomada de decisão, realizar análises imediatas das deliberações, e assim conseguir melhorar a eficácia das políticas públicas adotadas em todos os setores.
Há pouco mais de uma década, a Deep Knowledge Ventures, sediada em Hong Kong, nomeou o VITAL como mais um membro do seu conselho de administração — o primeiro sistema de IA a assumir esse papel. Esta decisão marcou uma mudança significativa na altura, onde a IA deixou de ser apenas uma ferramenta de apoio e passou a integrar o processo de decisão ao mais alto nível.
33% das organizações sediadas nos Emirados Árabes Unidos AU já contam com um Chief IA Officer nas suas estruturas, superando a média global de 26%. Esta função de liderança tem demonstrado resultados positivos, com as empresas a reportarem um retorno sobre o investimento (ROI) em inteligência artificial cerca de 10% superior.
Contudo, a iniciativa dos EAU não surge de forma desgarrada, já que a região tem vindo a fazer avultados e consistentes investimentos em IA. Em 2017, os EAU nomearam o primeiro Ministro de Estado para a Inteligência Artificial do mundo, cargo que engloba agora também as pastas de Economia Digital e Aplicações de Trabalho Remoto. Pouco tempo depois, é lançada a Estratégia Nacional de Inteligência Artificial 2031 – com o objetivo de posicionar o país entre as nações líderes mundiais em IA até esta data. Numa visão piramidal, a estratégia assenta na criação prioritária dos pilares fundamentais para a criação de um ecossistema fértil de IA, seguida de um conjunto de atividades concretas para desenvolver e implementar IA, culminando com o objetivo máximo de construir reputação no território como uma “AI destination”.
Como refere o documento, “o objetivo é construir uma economia de IA, em vez de esperar por ela”. As medidas, entre muitas outras medidas relevantes, incluem temas como:
- A implementação de um selo de aprovação para empresas de IA éticas e de alta qualidade, com vários níveis de certificação;
- Financiar ou intermediar projetos-piloto em setores prioritários identificados, sendo exemplos desses projetos a utilização de IA para gestão de energia e cadeias de abastecimento de petróleo, projetos de demonstração em logística e transportes, parcerias para aumentar o número de turistas com experiências impulsionadas por IA, e acesso a bases de dados hospitalares para diagnósticos através de IA;
- Estabelecer uma Rede de IA que agregue investigadores, especialistas da indústria e da política nos EAU para fomentar a investigação, colaboração e comercialização;
- Criar esquemas de incentivo para empresas estrangeiras de IA estabelecerem parcerias com empresas dos EAU ou relocalizar-se para os EAU, promovendo a transferência de tecnologia;
- Realizar cursos de Formação Pública de IA gratuitos para residentes dos EAU;
- Oferecer formação avançada a funcionários governamentais para os tornar “Especialistas em IA” nas suas entidades, com o objetivo de ter 100% da liderança sénior do governo treinada em IA;
- Iniciar um Programa de “Pensadores-Chave” para atrair especialistas de IA de renome mundial para visitar os EAU, participar em workshops e realizar projetos de investigação com entidades locais;
No relatório publicado em julho pelo IBM Institute for Business Value (IBV), que foi realizado em colaboração com a Dubai Future Foundation (DFF), Omar Sultan Al Olama, Ministro de Estado para a Inteligência Artificial, Economia Digital e Aplicações de Trabalho Remoto dos EAU, sublinha a importância da liderança no avanço organizacional de IA: “A IA não é uma descoberta isolada, são dez mil pequenas mudanças. É cultural. É institucional. É um hábito. O CAIO [“Chief AI Officer”] será quem impulsionará esse hábito — na administração pública, na saúde, na educação e na logística. Mais do que um tecnólogo, o CAIO é um tradutor entre a visão e a execução, uma ponte entre a estratégia e a ciência, um guardião de valor em toda a organização.”
O estudo, que abrangeu mais de 600 CAIO em 22 países e 21 setores distintos, revela que 33% das organizações sediadas nos EAU já contam com um CAIO nas suas estruturas, superando a média global de 26%. Esta função de liderança tem demonstrado resultados positivos, com as empresas a reportarem um retorno sobre o investimento (ROI) em inteligência artificial cerca de 10% superior. O impacto é ainda mais expressivo em organizações que adotam modelos operacionais centralizados ou em rede (“hub-and-spoke”), onde o ROI pode subir até 36%.
Face a estes avanços noutros países, a pergunta impõe-se: qual é a posição de Portugal nesta nova corrida global pela liderança em inteligência artificial?
Portugal lançou a sua Estratégia Nacional para a Inteligência Artificial (AI Portugal 2030) em maio de 2019, coordenada pela iniciativa INCoDe.2030 com o objetivo de mobilizar a sociedade para educação, inovação e investigação em IA, e impulsionar a adoção de IA em setores públicos e privados. A estratégia estruturou-se em quatro processos orientados para os temas: i) atração e colaboração com empresas inovadoras, ii) disseminação da inovação no tecido empresarial e setor público, iii) reforço da investigação científica com ligação à indústria, e iv) qualificação de talento em IA, desde o ensino superior à requalificação ao longo da vida.
Uma estratégia nacional para a IA só o será de facto se for abrangente e integrada, articulando as várias dimensões e se estiver ancorada na visão que queremos para Portugal, nos nossos objetivos estratégicos, nos nossos ‘objetivos de negócio’ enquanto país.
Em 2021, foi aprovada a Estratégia para a Transformação Digital da Administração Pública 2021–2026, ao abrigo de um investimento estimado de 643 milhões de euros no PRR, com ênfase na interoperabilidade, valorização de dados, serviços públicos digitais e cibersegurança.
No final do ano passado, o Governo português anuncia o desenvolvimento e lançamento do primeiro LLM de língua portuguesa de Portugal, o Amália, indicando que esta é a primeira iniciativa divulgada no âmbito da Agenda Nacional de Inteligência Artificial que seria apresentada de forma consolidada no 1.º trimestre de 2025 — momento que não chegou a acontecer, potencialmente devido ao fim antecipado do XXIV Governo.
Meses depois, o Programa do XXV Governo Constitucional reforça a ambição neste percurso, com dezenas de referências à IA, destacando-se a intenção de “finalizar e implementar a Estratégia Nacional para a Inteligência Artificial”, promovendo produtividade e eficiência na administração pública. No Programa, são previstas várias medidas relacionadas com o tema, como a nomeação de um Diretor/CIO de Sistemas de Informação da Administração Pública, a recriação de um Conselho para as Tecnologias de Informação, o lançamento de um Pacto de Competências Digitais, a introdução de programação no ensino básico, o investimento na formação em IA e qualificação de RH, o reforço de interoperabilidade entre organismos públicos (aplicando o princípio “once only”) e a criação de um Fundo de Inovação Digital para apoiar investigação, desenvolvimento e adoção de tecnologias emergentes.
Embora o percurso recente revele sinais encorajadores — o crescimento de awareness, a intenção política expressa, e a mobilização inicial de recursos — o verdadeiro desafio está em passar à ação orquestrada. É fundamental alinhar todas as peças com precisão, começando por aprofundar o conhecimento do nosso próprio território, de Portugal, mas também de Portugal na UE, e de Portugal no mundo: as especificidades da economia, do setor público e privado, os níveis reais de competências técnicas e organizacionais, a infraestrutura tecnológica, os recursos existentes e os ausentes. Precisamos entender e medir com rigor o ponto de partida, para não construir no vazio. Uma estratégia nacional para a IA só o será de facto se for abrangente e integrada, articulando as várias dimensões — infraestrutura, talento, literacia, regulação, ética, inovação, financiamento, serviços públicos… — e se estiver ancorada na visão que queremos para Portugal, nos nossos objetivos estratégicos, nos nossos “objetivos de negócio” enquanto país.
Isso exige um modelo operacional ágil, funcional, com liderança clara e capacidade de mobilização interministerial e intersetorial — uma verdadeira coordenação para esta orquestra tecnológica. Exige ainda humildade e ambição: observar, estudar e aprender com os casos de sucesso, com os erros e com as ideias brilhantes que outros já testaram. A tecnologia reinventa-se a cada segundo, e por isso a nossa estratégia tem de ser viva, iterativa, ajustável. E, acima de tudo, é urgente pensar desde o início como vamos medir a nossa performance — com que métricas, com que dados, com que sistemas — para que, daqui a seis meses, um ano ou cinco, possamos assegurar que a nossa trajetória se inscreve na história como um exemplo de visão e progresso sustentado.
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