De Alves dos Reis a David Neeleman
É por isso triste verificar que a Inspecção Geral de Finanças tenha contribuído para comparar o que não é comparável, travestindo candidamente a argumentação política em argumentação jurídica.
Corria o ano de 1922, quando Alves dos Reis comprou uma Companhia de Caminho de Ferro em Angola, usando, para tanto, cheques sem cobertura, que depois cobriu com dinheiro retirado da própria empresa, o que, mais tarde, lhe veio a valer a prisão.
Agora, assistimos a grande burburinho na opinião pública porque, em 2015, David Neeleman comprou uma Companhia Aérea, usando fundos que, de acordo com alguns políticos e com as parangonas de alguma comunicação social, afinal foram retirados da própria empresa.
Sucede que o que separa estes dois casos não são apenas quase 100 anos e distintos intervenientes. O que os separa é estarem do lado certo ou errado da lei. E David Neeleman parece estar do lado certo…
Vejamos em síntese o que sucedeu na privatização da TAP: o Estado Português vendeu à Atlantic Gateway 61% da TAP, por 10M€, obrigando-se Atlantic Gateway, simultaneamente, a capitalizar a empresa com 226,75MUSD, através de prestações suplementares de capital. Acontece que tal valor foi disponibilizado à Atlantic Gateway de David Neeleman (DGN) e Humberto Pedrosa, pela Airbus, como contrapartida da futura celebração de um contrato de fornecimento de 53 novas aeronaves, contrato esse que viria a ser cedido e/ou assumido pela TAP, através da sua administração recém-empossada. Pormenor: do contrato celebrado com a Airbus consta uma penalização exactamente de 226,75MUSD, caso as aeronaves não fossem compradas.
Sobre este negócio disse a IGF que “esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo nº 1 do artigo 322º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), (…) cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes (…). Cremos, pois, que os negócios em causa, aquisição dos 61% do capital da TAP, SGPS e a sua capitalização pela Atlantic Gateway, preenchem, ainda que de forma indireta, os requisitos exigidos neste normativo do CSC.”
Assim, à boleia desta afirmação da IGF, apelidou-se toda a operação gizada de nula… De ilícita… E de ilegal!
Nada mais errado!
A lei portuguesa proíbe a assistência financeira, ou seja, proíbe que uma sociedade conceda empréstimos ou por qualquer forma forneça fundos ou preste garantias para que um terceiro subscreva ou adquira acções representativas do seu capital. A razão de ser deste comando legal é proteger os credores da sociedade de um loop em que, em última análise, a totalidade do activo da sociedade poderá ser um crédito sobre o seu sócio, que, por sua vez, tem como único activo a participação social sobre a sociedade, participação essa que foi adquirida com o dinheiro que a própria sociedade emprestou ao sócio…
Mas é justamente definindo o que é assistência financeira que percebemos que o que foi feito na TAP não é materialmente uma operação proibida por lei.
É que o que a lei proíbe é que a sociedade (neste caso a TAP): “conceda empréstimos”, “por qualquer forma forneça fundos” e “preste garantias” para que um terceiro (neste caso David Neeleman) tenha meios para pagar ao vendedor (o Estado) o preço de aquisição acordado para as acções.
Então, para existir assistência financeira, terá de haver fluxo financeiro da TAP para o comprador, que este use para pagar o preço da privatização. Sucede, porém, que, neste caso, o fluxo financeiro é inverso. De facto, a TAP recebeu um activo (os 226,75MUSD das prestações suplementares, que lhe foram injectadas no balanço pelo seu novo accionista), assumindo em troca uma responsabilidade extrapatrimonial contingente (a penalidade contratual no contrato, caso desista de comprar as 53 aeronaves).
A contrapartida da injecção financeira de 226,75MUSD é, então uma penalidade de 226,75MUSD num contrato de fornecimento de 53 aviões, que a TAP não terá de pagar, caso cumpra o referido contrato. E, ainda que o tivesse de fazer, o que é certo é que os 226,75 MUSD serviram para capitalizar a própria empresa e não para entregar como preço ao vendedor Estado.
Mais, caso a TAP cumpra o contrato (como parece ter cumprido), nada terá de pagar, pelo que o hipotético empréstimo fica amputado de um fluxo financeiro inverso, que sempre lhe seria característico.
Assim, juridicamente, é errado pretender colocar em causa a privatização da TAP com base nesta argumentação. Além do mais, qualquer hipotética nulidade apenas feriria, nos termos legais, a operação de financiamento e nunca a aquisição das acções.
É por isso triste verificar que a Inspecção Geral de Finanças tenha contribuído para comparar o que não é comparável, travestindo candidamente a argumentação política em argumentação jurídica.
Na verdade, este negócio apenas seria eticamente censurável e juridicamente reprovável caso se demonstrasse que a TAP comprou as 53 aeronaves 226,75MUSD mais caro do que o que era o seu preço de mercado… Tal, porém, não foi alegado pela IGF nem se encontra demonstrado, pelo que era dispensável lançar esta confusão e fazer descer este labéu sobre todos os intervenientes no negócio.
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