E que tal um mercado comum de saúde?
A subsidiação do financiamento público da saúde em países como Portugal, por parte da União Europeia, é uma realidade que me desagrada, mas é a nossa triste sina.
O Conselho Europeu da semana passada, em vez de clarificar, adensou a confusão em redor do fundo de recuperação, proposto semanas antes pelo Eurogrupo. Por um lado, ao remeter o fundo de recuperação para o quadro financeiro plurianual da União Europeia, ele próprio embrulhado há ano e meio, é inverosímil que venham a ser tomadas decisões em breve. Por outro, ao tornar patentes as diferenças quanto ao fundo de recuperação (empréstimos vs. subvenções; despesa de investimento vs. despesa corrente; condicionalidade ou não), cavou-se um fosso em vez de se ter construído a ponte. A discussão tem tudo para correr mal. É, pois, altura de agarrar coisas concretas e procurar soluções que as pessoas entendam facilmente.
A crise gerada pelo COVID19 parte de um fenómeno comum aos diversos Estados membros, porém, passado o pico da primeira vaga, a discussão está (novamente) balcanizada. O exemplo do recente Conselho Europeu é ilustrativo. Voltou-se ao debate financeiro, que ao longo dos anos tem conduzido frequentemente ao impasse e à divergência, perdendo-se de vista o problema de saúde pública que despoletou a presente emergência e que teria o condão de poder unir em vez de dividir. É, portanto, um erro, como aqui escrevi na semana passada, iniciar o debate com o financiamento da despesa pública sem antes desenvolver uma ideia do que se pretende construir em comum na União Europeia.
A criação de um mercado comum de saúde na União Europeia poderia estar em cima da mesa. A ideia teria várias vantagens.
- Primeiro, seria uma forma solidária de partilhar os custos da pandemia e integrar a rede hospitalar europeia.
- Segundo, facilitaria a gestão de novas vagas pandémicas e a resolução de crises futuras.
- Terceiro, diversos modelos de prestação de cuidados de saúde continuariam a concorrer entre si.
Esta solução centralizaria na União Europeia a definição de uma base comum de financiamento público para a saúde, considerando mínimos que cada país individualmente teria de aportar, mas sem a criação de impostos europeus. Ao mesmo tempo, descentralizaria ao nível de cada país a prestação dos serviços de saúde entre os vários modelos possíveis (designadamente, mais ou menos privado ou público).
A despesa pública em saúde na União Europeia a 27 tem sido equivalente a 7% do PIB europeu, ou seja, cerca de 1 bilião de euros por ano. Assim, partindo deste nível de recursos, a Portugal, que representa 1,5% do PIB europeu, caberia um montante de 15.000 milhões de euros por ano. Trata-se de um valor muito superior àquele que sucessivos governos portugueses têm dedicado à saúde nos últimos anos – a título de exemplo, o orçamento do Estado para 2020 prevê 11.225 milhões de euros para a saúde. Ao receber a diferença da União Europeia, Portugal beneficiaria em quase 2% do PIB com este mecanismo, que poderia ser financiado através da capacidade de endividamento da própria Comissão Europeia, a partir do orçamento comunitário, com a emissão de obrigações perpétuas.
Um mercado comum de saúde reforçaria a ligação, e a liberdade de escolha, entre os cidadãos da União Europeia neste domínio tão fundamental, quer em matéria de direitos humanos, quer em relação à mobilidade das pessoas. Constituiria elemento de coesão europeia, facilitando a harmonização do enquadramento regulamentar aplicável ao sector.
Ao mesmo tempo, não se exigiria aos contribuintes do país A ou B que bancassem isoladamente o mecanismo de transferências correntes, nem se lhes pediria que subfinanciassem os serviços de saúde dos seus próprios países face aos níveis actuais. O financiamento do mecanismo, envolvendo perpétuas, apenas exigiria da Comissão Europeia o pagamento de juros, num montante previsivelmente comportável dentro do actual orçamento comunitário durante vários anos.
A discussão que hoje divide a União Europeia quanto ao fundo de recuperação tem a ver com a aplicação e o financiamento dos recursos. A consignação de recursos terá de ser parte da solução, desde que essa consignação não venha a ser estipulada sob o prisma da condicionalidade sancionatória. Ou seja, ela não poderá partir do país A para o país B, como se estivesse ela própria condicionada a uma relação credora ou devedora de um país face ao outro.
Pelo contrário, a consignação de recursos terá de ser encarada como estando inserida numa solução comum a todos, que globalmente valorize a livre circulação e a convergência na União Europeia. Um mercado comum de saúde cumpriria o propósito. Um fundo de recuperação, vagamente definido ou, pior ainda, visto como um cheque em branco, não.
A saúde é daqueles assuntos relativamente aos quais existe algum consenso na Europa. Nesta área, não deveria ser difícil construir propósitos comuns na União Europeia. Na verdade, se a decisão se desse ao nível das famílias políticas presentes no Parlamento Europeu (assim este tivesse iniciativa legislativa, que hoje continua a não ter), ela estaria porventura muito mais centrada nos méritos da ideia em si, e menos nas resistências nacionais à mesma.
As ideias políticas prevaleceriam mais facilmente, esbatendo os interesses de cada país. Na verdade, ao contrário da ideia de um fundo de recuperação, que é abstracta para a maioria das pessoas, a convergência e a integração dos serviços de saúde a nível europeu seria de fácil compreensão, num continente envelhecido e cada vez mais dependente de cuidados de saúde.
A subsidiação do financiamento público da saúde em países como Portugal, por parte da União Europeia, é uma realidade que me desagrada, na medida em que ela revela a nossa debilidade e dependência face a terceiros. Mas esta é a nossa triste sina numa altura em que, depois de anos de divergência económica, e ultrapassados por um número cada vez maior de países, a dependência de Portugal face à Europa é total. Desde os fundos comunitários para financiar o investimento no nosso país, à habilidade do Banco Central Europeu para manter baixos os juros exigidos à República, a Europa tem sido a nossa rede de salvação e nos próximos anos a situação só se vai agravar. Que, ao menos, os fundos sejam dirigidos a áreas que mereçam a simpatia de quem contribui relativamente mais e que façam sentido a médio prazo.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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