Entre Cravos e o Abismo: Sem Novembro, Abril dava-nos uma Venezuela
Reconhecer o papel do 25 de Novembro não é negar Abril; é rejeitar a leitura seletiva que a esquerda impôs durante décadas numa espécie de lavagem cerebral, diga-se, até bem-sucedida.
Durante décadas, Portugal habituou-se a olhar para a sua história recente através de uma lente parcial: a de que a democracia nasceu e se completou no 25 de Abril, como se esse dia tivesse, por si só, garantido todas as liberdades, todas as instituições e todo o modelo económico que hoje tomamos como garantido. Esta narrativa confortável — e politicamente conveniente para vários setores da esquerda — ignora que, entre 1974 e 1975, o país esteve à beira de uma deriva autoritária, económica e institucionalmente ruinosa. A verdade é simples e incómoda: sem o 25 de Novembro, não teria havido democracia pluralista, nem mercado aberto, nem integração europeia. Teríamos seguido um caminho de estatização, pobreza e instabilidade permanente.
A transição pós-Abril, longe de ser um processo linear, foi marcada por uma crescente radicalização económica. As nacionalizações em massa — celebradas por muitos na altura — colocaram o Estado a controlar toda a banca, os seguros, setores industriais e empresas estratégicas, sem qualquer base de sustentabilidade. Isto gerou uma queda abrupta do investimento privado, pois nenhum agente económico podia confiar num país onde ativos eram tomados sem aviso e sem indemnização adequada. As empresas estatizadas passaram a operar sem qualquer disciplina de mercado, acumulando prejuízos cobertos por crédito fácil, porque, naturalmente, o Estado não tinha de maximizar lucros — bastava-lhe socializar perdas. Este ambiente, em vez de fomentar justiça social, criou uma economia refém de decisões políticas e altamente vulnerável.
A instabilidade não se limitou às empresas. A incerteza sobre o futuro ideológico do país levou à fuga de milhares de empresários, gestores, técnicos e quadros qualificados, que optaram por emigrar ou retirar o seu capital de Portugal. O resultado foi uma fuga de capitais súbita e perigosa, acompanhada de perda de capacidade tecnológica e de gestão. Em menos de dois anos, o país viu desaparecer boa parte da sua estrutura produtiva competitiva e quadros técnicos competentes. Esta combinação de hostilidade à iniciativa privada e fuga de talento reduziu drasticamente o emprego e agravou os sinais de atraso económico. Em vez de igualdade, criou-se vulnerabilidade; em vez de desenvolvimento, estagnação.
A situação agravou-se com a politização do sistema financeiro. O controlo estatal da banca conduziu a uma expansão artificial do crédito, usado muitas vezes para financiar empresas públicas ineficientes ou projetos orientados politicamente. A inflação acelerou, a confiança no Escudo evaporou-se e Portugal tornou-se cada vez mais dependente do financiamento externo. Tudo isto num contexto em que se ameaçava abertamente a propriedade privada e se questionava o próprio papel da economia de mercado. Se esta trajetória tivesse continuado, Portugal teria seguido o modelo das economias planificadas do Leste: regimes politicamente fechados, economicamente ineficientes e estruturalmente pobres.
É neste ponto que o 25 de Novembro assume a sua verdadeira dimensão. Longe de ser uma interrupção do processo democrático, foi o momento em que Portugal evitou cair num sistema de partido único, travando a deriva autoritária que se desenhava e restabelecendo a pluralidade política. Foi também o momento em que se repôs a previsibilidade institucional mínima para qualquer economia funcionar. A partir desse dia ficou claro que as Forças Armadas não seriam instrumento partidário e que a democracia portuguesa se estaria a consolidar no seu formato europeu e liberal, e não num modelo de inspiração soviética.
Essa clarificação institucional teve consequências económicas imediatas. Ao estancar a instabilidade política e afastar a ameaça de radicalização, o país tornou-se novamente viável para investimento, para o desenvolvimento empresarial e para uma economia integrada com o exterior. O caminho para a adesão à CEE — que seria determinante para a modernização das infraestruturas, para a competitividade das empresas e para a profissionalização do Estado — abriu-se precisamente porque o 25 de Novembro trouxe estabilidade e previsibilidade. Sem essa mudança, Portugal nunca teria sido aceite na Comunidade Europeia — conhecido dos maiores períodos de crescimento económico real nas décadas de 80 e 90 —, que exige democracias sólidas e economias orientadas para o mercado. Os fundos estruturais, a industrialização moderna e a integração financeira devem muito mais a Novembro do que a Abril, porque sem Novembro não haveria condições para concretizar os benefícios de Abril.
O país deve, por isso, reconhecer que o 25 de Novembro não anulou Abril; completou-o. Se Abril abriu as portas da liberdade, Novembro impediu que essas portas fossem fechadas por uma minoria radical de esquerda organizada e armada. Contudo, muitos setores desta mesma esquerda resistem a esta evidência, preferindo manter o monopólio simbólico e ridículo dos “cravos” como se a liberdade tivesse cor política e como se o PREC tivesse sido inevitável e virtuoso. Transformaram os cravos — expropriando a sua beleza natural e universal — num símbolo politicamente útil, mas historicamente incompleto. Um símbolo que ignora o risco real de Portugal ter deslizado para a pobreza planificada e para um regime intolerante a la Venezuela, travado apenas pela coragem daqueles que recusaram entregar o país a uma minoria ideológica.
Reconhecer, de uma vez por todas, o papel do 25 de Novembro não é negar Abril; é rejeitar a leitura seletiva que a esquerda impôs durante décadas numa espécie de lavagem cerebral — diga-se, até bem-sucedida. Mas é tempo de dizer basta. É afirmar que a democracia só existe quando é de todos, e não quando serve apenas uma agenda. E é admitir que o modelo de desenvolvimento português — com todas as suas imperfeições — só foi possível porque alguém teve a lucidez de impedir que o fanatismo revolucionário destruísse as bases económicas indispensáveis para que a liberdade pudesse, de facto, prosperar. Celebrar o 25 de Novembro significa, portanto, celebrar o dia em que a democracia venceu o radicalismo e a economia de mercado venceu a utopia estatizante. O dia em que Portugal escolheu ser europeu, plural, aberto e próspero — e não uma experiência ideológica destinada ao fracasso. É essa honestidade histórica que falta assumir. E quanto mais cedo o fizermos, mais madura será a nossa democracia.
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