Flecha de Apolo

O Governo está compulsivamente comprometido com a sua sobrevivência política, mas finalmente compreende que também ele é um escravo das circunstâncias.

O plano gradual de abertura faseada é como um soco na boca do vento. Abre-se uma janela, depois uma varanda, a seguir uma porta, finalmente os grandes portões da sociedade. Este é o modo científico, politicamente digerido, para se poder controlar os efeitos da tempestade biológica, uma maneira de coordenar o calor da pandemia com a energia da acção política. As nuvens negras que permanecem à distância e por cima do nosso Mundo vão continuar a assinalar os nossos dias.

A biologia não tem afecto ou reconhecimento pela raça humana – seremos o que fizermos. Na comédia do mundo natural somos mais uma espécie ao sabor dos caprichos sarcásticos da sobrevivência e não os privilegiados de Deus num Universo de afectos e de sentimentos. Neste cenário, o plano do Governo é o que pode ser – um repositório de todas as pequenas grandes trivialidades de que se pode falar, o invisível dicionário de todas as coisas essenciais de que não se sabe falar. No repositório está a companhia do quotidiano; no dicionário está a fragilidade da Natureza Humana.

Percorrendo com o rigor de um antiquário a dinâmica do plano de abertura faseada, verifica-se que o Governo perde as ilusões infantis do optimista descuidado. Nesta lógica, o Governo é a Grande Central dos Correios, assume o papel do distribuidor metódico das Cartas da Pandemia, encarrega-se de fazer chegar a correspondência do vírus ao domicílio inscrito no envelope. E cada português tem o seu nome inscrito numa carta colorida com semáforos. A mensagem parece óbvia. Primeiro, a ideia de que cada português é um sujeito activo na dinâmica infernal da pandemia. Depois, que o Governo tem de conhecer o número de todas as caixas de correio para saber para onde devem ser enviadas as cartas, para que não se percam, para que não cheguem aos destinatários errados, para que não sejam mal interpretadas. Em cada carta, em cada sequência de instruções, está um excerto personalizado de um novo contrato social.

O Governo está compulsivamente comprometido com a sua sobrevivência política, mas finalmente compreende que também ele é um escravo das circunstâncias, não apenas refém dos caprichos de uma Esquerda tosca, tacanha, tapada. O Governo percebe tardiamente, mas percebe finalmente, que o seu futuro é uma consequência do beneplácito informado e consciente que respeita a integridade de cada um e de todos os portugueses. Cada português com as suas necessidades, com os seus desejos, as suas paixões, dúvidas, simpatias. O Governo não podia e não pode refugiar-se numa armadura ideológica que ignora as pessoas como o elemento descartável. Este é o erro categórico de todas as oposições, incapazes de resistir aos argumentos ideológicos de todas as matizes apenas para poder obter ganhos políticos imediatos. É uma visão de curto prazo, uma perspectiva que oscila ao ritmo dos títulos de jornal, uma operação mediática que em nome da sobrevivência política abandona cinicamente Portugal aos caprichos cruéis da Natureza.

Esta pandemia tem o sabor amargo e distópico que alguns romances também transmitem. O saber estranho de uma sonolência colectiva que vai construindo numa ideia de recolhimento o ideal de uma existência com maior significado – o reencontro com a Natureza, o idílio pastoral, a proximidade com Deus, os hábitos seculares de uma Idade de Ouro desaparecida, a ilusão medieval de um convento elevado ao sexto andar de um subúrbio anónimo de uma grande cidade. Existe uma melancolia que penetra nos espíritos enquanto as pessoas dormem. Uma melancolia que, ao acordar, envenena cada indivíduo para o resto do dia, talvez, para o resto da vida. O confinamento é uma segunda infância.

Mas as sociedades modernas são incompatíveis com a primeira infância e destruidoras das ilusões de que o paraíso ainda está ao nosso alcance. As sociedades modernas inventam outra Terra debaixo dos nossos pés, um outro Mundo em que tudo é mudança e decadência. A pandemia é uma mensagem que nos manda sempre voltar à casa de partida algures num jardim de cimento. A pandemia não é um estado estável, mas a convulsão permanente de um fluxo de ondas. Cada um de nós regressa ao porto original para descobrir que o paquete partiu. Neste ficar, o viajante sobrevive à sua vida para poder morrer.

O ritmo inclemente da política acidental não é sensível a esta dimensão humana da pandemia. O rigor mortis de uma economia em asfixia invade a Terra com o uivo de um exército de bárbaros. As pandemias acabam. As dívidas públicas são eternas. As pessoas morrem. Os sobreviventes abrigam-se nos apoios sociais, nos bancos alimentares, nos grandes programas de intervenção do Estado, na solidariedade entre semelhantes, nas redes informais de cuidados indiferenciados, na diferença dos voluntários para o Mundo, na elegância angulosa das palavras sem esperança, na esperança fluida de um porta aberta para a rua ao encontro dos desejos dos outros. O Governo não tem o mapa milagroso para sair do labirinto. Mas deve ter o compasso de uma ideia para não acabarmos todos a tomar banhos de sol entre os escombros de um Mundo que um dia foi o nosso.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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