França, caquética e ingovernável

França está ingovernável não por excesso de ideologia, mas por défice de realidade: tudo se resume a contas políticas e de poder.

Não consigo impedir que os franceses sejam franceses. Não consegues fugir aos teus demónios. São ingovernáveis”. É possível que, num momento de forte frustração política, Charles de Gaulle tenha confessado isto sobre o seu povo. Se o disse exatamente por estas palavras, ou em que contexto o disse, não sabemos: Certo é que tinha razão.

França é hoje uma nação que, embrenhada no seu passado, recusa a ideia do seu declínio. Mas recusa-a da pior forma, num estado de negação cega, deixando cair todos aqueles que lhe apontam os problemas ou procuram soluções. Se o momento de França hoje fosse um filme, era certo qual seria: The Father, a história de um pai, magistralmente representado por Anthony Hopkins, que se recusa a aceitar o seu estado avançado de demência. É também a história de sofrimento da filha, representada por Olivia Colman, e de todos ao seu redor. Hoje França é isto, um Estado em negação, em convulsão, sem fim ou sem ter um fim à vista.

Desde julho de 2020, a média do tempo em funções de cada Primeiro-Ministro é de menos de um ano. Se considerarmos apenas desde janeiro de 2024, falamos de 160 dias por Primeiro-Ministro. É uma rotatividade absurda, sem nexo. Lecornu foi a última vítima deste rodopio político, culminando, nesta semana, com um governo que durou umas horas e tendo sido Primeiro-Ministro sensivelmente metade do tempo de Liz Truss, no Reino Unido.

Desde as eleições convocadas à pressa por Macron, depois da derrota nas europeias, os 270 dias de Bayrou foram recorde, acabando, de resto, da mesma forma inglória que Barnier: a tentar controlar um pontinho do défice público. França é o terceiro país com maior dívida pública da Europa, 114%, logo atrás dos gregos e dos italianos. E esta é uma dívida galopante, porque é assente em défices orçamentais correntes enormes, quase 6%, em 2024, que por contabilidade política e eleitoral ninguém quer controlar.

Ainda faltam dois anos para as próximas eleições, mas Macron, internamente, não passa de zombie político, o que faz com que os franceses vivam, na prática, em ambiente de constante pré-campanha eleitoral. O parlamento está estilhaçado em três blocos de dimensões similares, mais os Republicanos e uns outros apêndices. Estes blocos são, em si, diversos e nem sempre estão de acordo. A líder da oposição não pode ser eleita para cargos públicos e o seu delfim, de 30 anos, Jordan Bardella, figura fortíssima entre os jovens e nas redes sociais, é hoje a personalidade política mais popular, até entre os militantes do partido.

É impressionante pensar como, em 2002, Chirac derrotou Jean-Marie Le Pen com mais de 80% dos votos. Quase 25 anos depois, o favorito a ser presidente francês é o delfim da sua filha, que aos 19 anos deixou de estudar e, em Portugal, nem podia ser candidato. O centro, ainda perdido nas suas idiossincrasias internas, divide-se entre Glucksmann, Attal, Retailleau ou Philippe, o outro forte candidato. Entre outros, à esquerda há ainda Mélenchon ou Ruffin, enquanto à direita de Bardella ainda se perfila Zemmour. Este é um enquadramento de um país profundamente entrincheirado, sem uma liderança carismática que carregue consigo o peso de um futuro esperançoso.

Estes são apenas alguns sintomas de um país doente, de uma elite política incapaz de se deixar governar. Um parlamento retalhado pela inabilidade de Macron que, por mais difícil que pareça, se fosse a eleições, ainda ficava pior. Sondagens presidenciais que mostram que tudo pode acontecer. Contas públicas depauperadas, com Édouard Philippe a pôr em cima da mesa uma intervenção do FMI. Crises nos hospitais, contestação social, greves em catadupa, transportes públicos parados, escolas sem professores: o futuro francês é incerto, mas é certo que não será bom.

E agora? Qualquer Primeiro-Ministro, venha donde vier, sabe que não consegue governar. Eleições só piorariam a situação, pelo que teremos mais dois anos a adiar um problema inadiável. Terá Philippe razão e poderá mesmo ser o FMI a governar? Honestamente, não sei.

França está ingovernável não por excesso de ideologia, mas por défice de realidade: tudo se resume a contas políticas e de poder. Está doente: sofre o seu povo e sofrem aqueles que, como nós, europeus, estão à sua volta. França é, indiscutivelmente, um motor da Europa e espero que, desta vez, não seja um espelho antecipado do que está para acontecer.

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