Ideologias sem Ideias
No país sem ideologia, a avaliação das posições políticas no Parlamento e na rua obedecem ao mesmo critério – o volume máximo no som das palavras e o número máximo de manifestantes na rua.
Pode um país existir sem uma ideologia? Pode um Orçamento ser apenas um documento técnico sem métrica política ou visão de longo prazo? Em Portugal parece que sim. Os bombeiros sapadores invadem as escadarias do Parlamento sem oposição da polícia e afirmam que não entram na Assembleia da República porque não querem. Porque respeitam as instituições. Mas que instituições? No meio das palavras de ordem, pneus a arder, tochas a debitarem fumo vermelho em pleno Orçamento, os bombeiros estão de que lado? Do lado da República e do interesse geral ou do lado das corporações e dos interesses particulares? Parece que não importa, mas tem uma enorme importância. No país sem ideologia, a avaliação das posições políticas no Parlamento e na rua obedecem ao mesmo critério – o volume máximo no som das palavras e o número máximo de manifestantes na rua. As ideias são um departamento exótico com guichet no primeiro andar a contar vindo do céu. Está vazio e sem clientes. Devia ser o guichet da República.
O PS pode colocar numa janela da sede um placard a afirmar que defende a democracia progressista, o socialismo democrático, o direito das mulheres, a igualdade de resultados, a afirmação de que nenhum ser humano é ilegal, a propósito da imigração, que defende todas as minorias, o predomínio do Estado e mais a justiça social. Nada transparece nas negociações do Orçamento para além de um híbrido entre o interesse de curto-prazo e uma micro-ideologia de esquerda.
O Governo pode colocar na nova sede em edifício estalinista um placard a afirmar que defende a democracia moderna, a social-democracia e a democracia cristã, a igualdade de oportunidades, o liberalismo económico, a produção de riqueza, o predomínio do Mercado, o controle das migrações mais a visão de uma direita leve e descomplexada. Nada transparece nas negociações do Orçamento para além de um híbrido entre o interesse de curto-prazo e uma micro-ideologia de direita.
Entre uma micro-ideologia de esquerda e uma micro-ideologia de direita a diferença é nenhuma e tudo acaba numa confusão de imposições e de cedências para manter o status-quo. Se o país é um complexo vitral no meio da grande catedral da democracia, as negociações sobre o Orçamento são uma discussão sobre a distribuição dos fragmentos vermelhos e dos fragmentos púrpuras. O que o Governo púrpura não tem e o PS vermelho não tem é a visão global do mundo real que o vitral pretende representar. Sem o compasso da ideologia, sem a visão global do país político e do mundo social, a política é uma viagem de improviso até ao limite em que a cidade muda de nome. É construir o futuro radioso com as soluções do passado numa cidade desconhecida.
A grande crítica da direita radical à democracia é exactamente esta incapacidade para mudar o mundo com opções e com soluções novas. A mesma direita radical que também não tem qualquer ideologia para além de um profundo ódio aos regimes liberais. Por isso dirá tudo e o seu contrário numa espécie de teatro político público onde o macabro se mistura com as mais puras e sublimes intenções. Resta dizer que as soluções propostas vão novamente no sentido de construir o futuro com as soluções do passado. A direita radical sofre da mesma doença que pretende curar – o domínio completo de uma micro-ideologia radical.
Portugal e a Europa vivem um período em que as micro-ideologias dominam as grandes opções históricas das nações. E para que fique bem claro, o optimismo e o pessimismo não pertencem ao catálogo das ideologias, mas sim à relatividade subjectiva dos estados de alma. Ao cuidado do Presidente da República, vamos então negociar, debater, aprovar, um Orçamento baseado numa característica da personalidade impulsionada por um estado de alma? Com certeza que vamos. É a política do coração e a opção preferencial pelo consenso.
As micro-ideologias infectam o mundo político com uma permanente sensação de crise. Nas escadarias do Parlamento passam manifestações de bombeiros, polícias, militares. O que fazer e como interpretar estas explosões orgânicas ou inorgânicas à sombra de um Orçamento sem ideologia? Devemos fugir da manifestação porque esta representa uma subversão da democracia? Devemos juntar-nos à manifestação porque esta representa a pluralidade da democracia? Não existem factos políticos puros. Não existem factos políticos irrevogáveis de significado. Fugimos ou ficamos?
Existe a imagem do cidadão ideal que chegado às portas do céu é recebido como um herói e com uma frase: “Parabéns! O que o trouxe aqui foi a total ausência de compromisso com qualquer ideologia”. Quando morrermos vamos todos para o céu.
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