Ir pelos ares
Memória dos tempos glamorosos (mas nem sempre gloriosos) da aviação de luxo.
Não se sabe bem quem inventou a expressão “jet set”. Diz-se que foi usada pela primeira vez em 1951, nas páginas do San Francisco Examiner, propriedade de Randolph Hearst, o célebre multimilionário que inspirou Citizen Kane de Orson Welles. Mas, nessa altura, a expressão nada tinha a ver com ricaços e viagens intercontinentais. O San Francisco Examiner utilizava o termo “jet set” para descrever a altitude a que os jactos de caça podiam voar na guerra da Coreia. Mais tarde, o New York Times também falaria de “jet set”, desta feita para ilustrar a atitude rebelde de alguns adolescentes dos países comunistas, atraídos pelo Ocidente, pelos seus valores e cultura e, acima de tudo, pelos seus bens de consumo, desde a Coca-Cola aos jeans de marca. É, pois, legítimo atribuir ao colunista social Igor Cassini a paternidade da expressão “jet set”, tal como hoje a conhecemos – e que até deu nome a uma defunta discoteca para os lados da Malveira da Serra.
Traçada a genealogia do conceito, sobrevoemos este livro de William Stadiem: “Jet Set. The people, the planes, the glamour and the romance in aviation’s glory years” (Nova Iorque, Balantine Books, 2014). Stadiem é, à primeira aproximação à pista, um autor pouco recomendável: colunista social em Hollywood da revista Interview, de Andy Warhol, especializou-se em frivolidades de vedetas milionárias ou intimidades das estrelas & cometas do cinema. Foi crítico gastronómico do Los Angeles Magazine… Deus nosso, ao que chega o percurso de um antigo advogado de Wall Street com um MBA em Harvard, transformado em perito nos mexericos de que Hollywood é fértil.
E a que baixo nível de altitude – mais do que subterrâneo! – chega o crítico que se interessa e fala de livros que contam histórias sobre histórias da gente do cinema, dos cantores de garganta aveludada-romântica, dos super-ricos de Nova Iorque em excursões desbragadas à capital de França.
Pois é precisamente aí que reside o fascínio deste livro. Certamente voyeurista e nostálgico, indubitavelmente embasbacado pelo perfume das vidas que relata, o livro “Jet Set”, de William Stadiem, vale muito a viagem.
Além desta obra, Stadiem é autor de uma vasta bibliografia sobre a idade dos excessos na Meca do cinema, os restaurantes mais famosos do planeta Terra, a aristocracia do Deep South, as atribuladas existências de Marylin Monroe e de Frank Sinatra, entre outras superficialidades do mesmo quilate.
Sobretudo em noites cálidas de um Verão sarraceno, é puro deleite viajar no alto dos céus na companhia imaginária de Jackie Kennedy, de Stavros Niarchos ou Aristotle Onassis, quando havia gregos ricos, da divina Maria Callas, a da voz portentosa, de Gianni Agnelli, os olhos azuis da FIAT, do brasileiro “Baby” Pignatari ou do lendário playboy Porfirio Rubirosa, de que um dia destes aqui se falará. Um círculo restrito, à volta do qual borboletavam parvenus e alpinistas sociais, e que se movia entre as praias topless de Saint-Tropez e as neves alvíssimas de Gstaad, que jantava no Maxim’s e se divertia no Regine’s, alimentando as revistas cor-de-rosa, um dos maiores e mais potentes opiáceos do nosso tempo.
Em 26 de Outubro de 1958, ao inaugurar a primeira linha comercial Nova Iorque-Paris, a Pan Am fez história. A aeronave era um Boeing 707 chamado Clipper America, baptizado pela primeira-dama, Mamie Eisenhower, a mulher de Ike. Até aí, o rei dos ares que cruzava o Atlântico era o avião presidencial de Eisenhower, um Lockheed Constellation.
Nesse mesmo ano, nos top’s das vendas de discos, Frank Sinatra arrasava com Come Fly With Me. A Boeing conseguia agora oferecer ao cidadão comum – bem, ao cidadão comum que pudesse pagar uma pequena fortuna – um confortável voo nocturno de apenas sete horas transatlânticas. Não só aumentara a velocidade da viagem, mas também a capacidade de armazenamento dos passageiros: 120 almas humanas poderiam deslocar-se em poucas horas entre Nova Iorque e Paris, ou vice-versa.
Os preços, claro, não eram baratos: 909 dólares na classe de luxo e 489 em económica. Para termos uma ideia, um americano desses anos dourados pagava 2.700 dólares por um Chevrolet Impala e o preço médio de uma casa andava pelos 12.750 dólares. O catering e as hospedeiras, bem ao estilo “Coffee, Tea or Me?”, justificavam a fortuna; para quem a pudesse pagar, está visto.
Alguns podiam. Outros podiam até comprar um avião, ou vários. Sinatra, por exemplo, tinha um pânico terrível dos voos comerciais, das viagens em que na cabine dos pilotos corriam à farta os melhores vinhos franceses ou ardentes conhaques – com pleno conhecimento e sem qualquer objecção para as autoridades responsáveis pela segurança aeronáutica. Era assim, um mundo simples. Os pilotos bebiam, os passageiros fumavam cigarros e charutos, entre champanhe e caviar, as refeições a bordo eram servidas pelo parisiense-luxuoso La Tour d’Argent (janela indiscreta: Claude Terrail, filho do fundador do La Tour de Argent, André Terrail, teve como casos amorosos com Ava Gardner e Rita Hayworth, entre outras iguarias).
No ano seguinte ao histórico voo Nova-Iorque Paris, a Air France aderiu aos Boeing 707, enquanto a arqui-rival da Boeing, a Douglas Aircraft, introduziu no mercado o seu DC-8. Começou a guerra: a United Airlines, a Swissair, a KLM e a Japan Airlines a alinharem pelo DC-8; a BOAC (antecessora da British Airways), a Lufthansa, a Air India e a Qantas a escolherem o 707 da Boeing. Grandes companhias como a TWA e a American Airlines passaram a usar o Boeing 707 nos voos domésticos na América, percorrendo os Estados Unidos de costa a costa por umas módicas cinco horas de viagem. Em 1958, 500 mil turistas norte-americanos tinham visitado a Europa, contemplando os espelhos de Versalhes e as jóias da Torre de Londres.
No final da década, esse número aumentara 400 por cento. A taxa de crescimento fora tão alta que cedo tornou obsoleto e acanhado o Boeing 707, levando à construção do gigante dos ares, o 747.
Depois, o dilúvio. Do céu começaram a cair seres alados, pintados de branco imaculado ou de prata reluzente. Os receios de Sinatra pareciam ter fundamento. Afinal, fizera bem em ter o seu avião privado, desconfiando da segurança dos voos comerciais. Em menos de duas semanas, despenharam-se quatro Boeing 707, um dos quais levando a bordo uma excursão de gente rica de Atlanta, que fora a Paris ver os museus e, claro, jantar no La Tour d’Argent. Em 1962, o Chateâu de Sully, assim se chamava a aeronave da Air France (todos os jactos da Air France tinham nomes de chateâus, para seduzir a clientela americana), caiu nas imediações de Orly, em Villeneuve. Morreram os 130 passageiros, naquele que foi, até aí, o maior desastre da história da aviação. Sobreviveram apenas duas hospedeiras e um comissário de bordo, que pela ventura do destino estavam sentados nos bancos de trás do Boeing.
Com a sucessão de desastres, muitos perderam a confiança no poder dos jactos. A Air France conquistou o duvidoso título de “Air Chance”. Mas nem isso demoveu os super-ricos das suas vidas passadas a jacto.
Frank Sinatra, esse, via confirmados os seus piores temores. Até ao dia em que levou a família e os amigos até Palm Springs, onde iria inaugurar a temporada de espectáculos no Caesar’s Palace. Janeiro de 1977. A mãe de Frank, Dolly, recusou-se a ir no avião alugado, pois não queria voar na companhia da nora, que odiava. E o filho extremoso lá embarcou a mãe noutro avião privado, um Lear Jet. Que, entre o nevoeiro e as chuvas, embateu em Mount San Gorgonio, matando todos os que iam a bordo, passageiros e tripulantes. Mas não, não é assim que termina a história. Depois ainda veio o low cost. Morreu o glamour dos ares, democratizaram-se os céus do mundo.
Voa-se hoje a baixo custo, mas a duras penas. Sem catering de caviar nem hospedeiras de luxo, horas e horas de espera, voos cancelados, filas intermináveis, gente tratada como gado. Mas, feitas as contas, não será melhor assim?
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