IRC: Basta corrigir a estupidez

Portugal deveria começar por corrigir aquilo que faz de si um autêntico motivo de chacota ao nível da tributação empresarial.

A julgar pela aguerrida disputa que antecedeu a proposta de Orçamento do Estado para 2025, a discussão sobre o IRC parece ter assumido, em conjunto com o IRS Jovem, o papel com maior protagonismo na atualidade fiscal portuguesa. Após muita “concertação”, a decisão do Governo foi abdicar do ímpeto (bluff?) da sua proposta inicial, que levaria a taxa geral de IRC para 15% em 2027, e contentar-se com uma magra descida, no imediato, para 20%, complementada com o habitual ramalhete de deduções, majorações e “incentivos” às empresas que demonstrem especiais virtudes aos olhos da maioria social-democrata (na medida em que o PS gostaria de um IRC ainda mais baseado nessa “fiscalidade do bem”, creio poder-se dizer que se trata, efetivamente, de uma perspetiva maioritária).

Há coisa de um ano, já aqui escrevera uma crítica a essa visão dirigista e paternalista da fiscalidade empresarial, que visa fazer depender a tributação das empresas das virtudes e benfeitorias que estas vão “contribuindo” para a sociedade (como se uma empresa lucrativa e com os impostos em dia não fosse, por si só, um benefício para a sociedade…). Não vejo, por isso, necessidade de estar a escrever a mesma coisa. Portugal tem benefícios, incentivos e “ajudinhas” a mais, não a menos.

Assim sendo, deverei eu vir aqui clamar por uma descida mais agressiva da taxa geral de IRC? Será essa a bala de prata liberal, como muitos insinuam? A resposta é que não. Por muito que discorde da abordagem socialista de querer dirigir o investimento privado através de descidas fiscais seletivas, concedo-lhe alguma razão na ideia de que reduzir drasticamente a taxa geral de IRC não é a solução. Essencialmente, porque o comboio dos “paraísos” fiscais já passou. Para além de haver agora, na prática, um limite mínimo de 15% para multinacionais, o que nos impede de apostar numa redução suficientemente agressiva da nossa taxa (e que também, já agora, mitiga muitos dos benefícios que a tal abordagem “seletiva” do PS poderia oferecer), certas oportunidades só aparecem uma vez. A tão mencionada Irlanda fez o seu trabalho de casa e apostou na competitividade fiscal quando era tempo disso, colhendo os benefícios e gerando todo um ecossistema que não vai agora fugir só porque Portugal se lembrou, passados 20 anos, de reduzir a taxa de IRC para 15% (mínimo possível, na prática).

Qual é, então, a mensagem que gostaria de transmitir? É que Portugal, muito antes sequer de ponderar ser um grande campeão da competitividade fiscal, deveria começar por corrigir aquilo que faz de si um autêntico motivo de chacota ao nível da tributação empresarial. Por outras palavras: não é preciso ser brilhante; basta só corrigir a estupidez.

Vamos a exemplos. O primeiro e mais óbvio é o da derrama estadual. Sim, já sei que eliminar a derrama estadual vai beneficiar as grandes empresas, etc. etc., a conversa do costume. Mas será que, quando foi introduzida, a derrama não prejudicou especificamente as tais grandes empresas? O argumento não valerá para os dois lados? É bom lembrar que a progressividade fiscal de que fala a Constituição (art. 104.º) se refere apenas ao imposto das pessoas singulares e não ao das empresas, que deve simplesmente incidir sobre o seu “rendimento real” (lá voltaremos). Como mencionado no mais recente estudo publicado pelo Instituto Mais Liberdade, no qual que tive o (sádico?) prazer de colaborar, Portugal é dos únicos países da Europa com um IRC que penaliza o aumento dos lucros, e é certamente o que tem o maior número desses escalões adicionais.

A “derrama estadual” (belo eufemismo) foi literalmente inventada quando o Partido Socialista nos ia levando à falência e já não sabia onde mais ir buscar dinheiro. Foi mais um desses impostos “extraordinários” e “temporários” que, uma vez tomando-se-lhes o gosto, nunca mais há coragem para eliminar. Mas eis o mais simbólico, para os que tiverem memória curta: é que a última alteração, em 2019, que introduziu o escalão dos 9% e levou Portugal para a taxa máxima de IRC mais elevada dos países europeus da OCDE, esse último prego no nosso caixão anti-lucros, foi introduzida por proposta do… PCP! Essa autoria até nem é totalmente de surpreender, mas contemple-se o cenário: os líderes dos dois maiores partidos passam semanas a discutir como reformar o IRC de forma a estimular o investimento em Portugal, mas nenhum se lembra de começar por limpar as influências comunistas desse imposto. Será preciso explicar que influências comunistas não são lá um grande chamativo para investidores? Do que estamos à espera?

Enfim, eu entendo que acabar com a derrama estadual de uma só vez seja complicado pela “perda” de receita (se assumimos que parte do rendimento das empresas já pertence ao Estado por direito). Mas, se queremos tributar, ao menos que simplifiquemos. Acabemos com os 9% comunistas (salvo seja) e baixemos a derrama estadual de forma a que as derramas adicionais (sim, há outra…) nunca superem os 5%. Não seria tão mais simples? Taxa geral de 20%, porque somos uma social-democracia (que remédio…), e derramas adicionais até 5%, enquanto os socialistas não deixarem acabar de vez com a estupidez. Não é perfeito, mas já “estou por tudo”…

Ainda assim, falar de taxas é algo que, como temos visto, a classe política e comentadora ainda vai fazendo. Só que depois o diabo está (também) nos detalhes. Pergunto-me se haverá no Parlamento quem tenha experiência prática para saber que, apesar de os prejuízos fiscais terem passado (e bem) a ser indefinidamente reportáveis para o futuro, os mesmos só podem ser abatidos contra a taxa geral de 21% e não contra as derramas. Ou seja, se uma empresa tem prejuízo num ano, Portugal deixa que esse prejuízo seja abatido contra o lucro no ano seguinte, mas vai lá na mesma cobrar a derrama dos 9%. Alguma empresa estrangeira tem paciência para esta brincadeira? Só mesmo as que vêm cá parar sem antes saberem no que se estão a meter.

Vamos a outra? Falamos de querer manter empresas e talento em Portugal, certo? Mas em 2010 (sempre 2010…), no seguimento da crise financeira e em “parceria” com novas regras impostas pelo Banco de Portugal sobre a remuneração dos administradores bancários, foi introduzida uma”tributação autónoma” de 35% (!) sobre os bónus a administradores (de quaisquer empresas!) que sejam superiores a 27 500€ e não sejam diferidos no tempo, pelo menos na sua metade, em pelo menos 3 anos, mediante bom desempenho da empresa. Ou seja, os suspeitos do costume, que governavam em 2010, aproveitaram o puxão de orelhas dado aos bancos para se meterem nas decisões de remuneração… das pastelarias, que, assim, se quiserem dar um bónus de 50 mil euros ao seu administrador ou gestor em determinado ano, vão ter de pagar 35% disso em IRC (não era constitucionalmente suposto incidir sobre os lucros?), para além de o administrador ter de pagar IRS sobre o mesmo valor! Eu acho interessante como tantos empresários se queixam da tributação autónoma das viaturas, mas ninguém fala deste autêntico atentado fiscal à soberania das empresas privadas (talvez porque são poucas as empresas com bónus para distribuir e as que restam não têm tido coragem de fazer valer a sua honra enquanto taxpayers? Esperemos que a nova Associação de Contribuintes venha ajudar.)

Enfim, a conversa já vai longa, mas o nosso IRC tem mesmo muitos “podres” para desvendar. Em vez de inventarmos mais deduções e incentivos, em vez de andarmos na ilusão de que vamos ensinar aos outros países como é que se faz um sistema fiscal competitivo, em vez de sermos (tão) socialistas, sejamos humildes: basta corrigir a estupidez.

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