Justiça cega? Sim, mas com muito respeitinho
Querer limitar a autonomia de magistrados depois destes serem travados na sua decisão de ouvir o Presidente e o primeiro-ministro sobre Tancos é o mesmo que dizer: não incomodem os políticos.
Tão certo como o Natal ser em Dezembro é o regresso, de quando a quando, de polémicas sobre assuntos e dilemas que já achávamos resolvidos. O exercício da investigação criminal, a autonomia dos magistrados em relação aos restantes órgãos de soberania e a ausência de interferências externas na condução de processos é um desses assuntos.
O mais recente sobressalto tem a ver com um parecer do Conselho Consultivo do Ministério Público sobre os limites e o exercício da autonomia dos magistrados no Ministério Público que conduzem cada processo face à sua hierarquia.
Quem olha de fora para estas polémicas e recusa pôr as mãos no fogo numa discussão que poderá estar inquinada pelo corporativismo próprio dos sindicatos, por intenções menos nobres dos dirigentes da Procuradoria-Geral da República ou por tentativas de controlo de investigações por parte do poder político – ou por todas estas, que é certamente o mais provável – fica, ainda assim, com algumas perguntas para fazer.
A primeira é: porquê agora?
A estrutura do Ministério Público, as suas funções, níveis e relações hierárquicos estão há muito definidos e os mais ingénuos poderiam ser levados a pensar que esses assuntos, bem ou mal, estariam já resolvidos. Por que carga de água é que se discute agora, e logo de forma tão violenta e estruturante, um assunto que é uma peça essencial dos alicerces da investigação criminal de um regime democrático digno desse nome?
Não houve nenhuma revisão constitucional nos últimos anos, não ocorreu nenhuma alteração relevante nas leis sobre a matéria, nem sequer chegaram novos protagonistas políticos, que poderiam trazer ideias novas e vontades próprias. Presidente da República, primeiro-ministro e ministra da Justiça são os mesmos desde 2016.
O que mudou foi a liderança da Procuradoria-Geral da República. Lucília Gago substituiu Joana Marques Vidal há pouco mais de um ano.
Provavelmente, a actual PGR tem um entendimento diferente do exercício de hierarquia entre magistrados e os seus superiores e fez agora questão de afirmá-lo. E isso leva-nos, como sempre, a um dos problemas endémicos do país: como as instituições são fracas, como não têm boas práticas definidas e consolidadas, tudo fica dependente do entendimento e opiniões próprias do chefe de turno. E estes são transitórios, como se sabe.
O que não podemos é andar nesta vida: com Pinto Monteiro a percepção foi de um exercício de favores ao poder político na gestão de investigações e arquivamentos; com Joana Marques Vidal a percepção foi de uma grande independência e coragem, o que levantou logo vozes preocupadas com a judicialização da política e da vida pública; e com Lucília Gago voltamos às acusações de interferências externas, com o sindicatos a referirem mesmo o regresso aos tempos de Pinto Monteiro.
Isto é impensável pela tragédia que significa. Em Portugal, estes debates e discussões ocorrem como se a separação de poderes e o sistema de freios e contra-pesos próprios de um regime democrático tivessem sido descobertos há meia dúzia de anos e o mundo ainda estivesse a testar os melhores modelos: “vamos lá então pensar como é que isto pode funcionar”.
Estamos sempre a partir da base zero, com todos os custos que daí resultam para a credibilidade das instituições, para a confiança que os cidadãos têm nelas e para o desempenho económico e social.
A segunda pergunta é: se nada muda porque se pediu e homologou um parecer?
A PGR diz que “a relação hierárquica mantém-se como sempre aconteceu ao longo de décadas”. Então não se entende a necessidade deste parecer e toda a polémica que, previsivelmente, ele iria gerar. Alguma coisa Lucília Gago quer mudar. E o país ganharia em conhecer de forma clara o quê e porquê. Porque os factos que se conhecem não nos deixam descansados. E estes têm a ver com a forma como tudo isto nasceu, que motivam uma terceira pergunta.
Por que se estabelecem regras gerais a partir de um polémico caso concreto?
Para ir à origem desta polémica é preciso recuar até Outubro. Foi aí que se soube que o diretor do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) travou a pretensão dos procuradores que lideram a investigação do caso de Tancos, que pretendiam inquirir como testemunhas o Presidente da República e o primeiro-ministro. Além de considerar que essas inquirições eram inúteis para o processo, o director do DCIAP contrariou os magistrados porque entendeu que a “dignidade e o prestígio do cargo” de Presidente da República e do primeiro-ministro são valores preponderantes a ter em conta.
Foi esta divergência que levou a PGR a pedir um parecer sobre as relações hierárquicas no Ministério Público e quem tem poder para decidir o quê.
Ora, querer estabelecer limites à autonomia de magistrados depois destes serem travados na sua decisão de ouvir dois dos mais importantes titulares de cargos políticos em exercício é o mesmo que dizer: não incomodem os políticos.
A invocação da “dignidade e prestígio do cargo” é tudo aquilo que numa democracia não pode nunca ser invocado quando se trata da justiça. Esta é suposto ser cega a cargos ou estatutos sociais.
E muito menos quando o caso concreto é o escândalo de Tancos, que tem um então ministro da Defesa envolvido, acusado de ter sabido da encenação da recuperação das armas, e envolveu práticas criminais já admitidas por estruturas da Polícia Judiciária Militar.
Se num caso de Estado como este, passado ao mais alto nível, é considerado assim tão descabido querer ouvir – sempre como testemunhas, sublinhe-se – o Presidente da República e o primeiro-ministro, que têm funções de tutela sobre as Forças Armadas e a quem estas reportam informação reservada, então não se sabe em que casos poderá a justiça “incomodar” os detentores desses cargos ou qualquer membro do Conselho de Estado para fazer o seu trabalho.
É difícil olhar para isto tudo – o processo, o timing e o facto que lhe deu origem – e não concluir que as diligências permitidas à Justiça dependem do destinatário. Uma coisa é a plebe e outra são os “altos dignatários”. Mais de quarenta anos depois do fim do regime, uma parte do país continua com o regime dentro de si. O respeitinho é muito bonito.
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