Editorial

Marcelo livrou-nos da “mexicanização” do regime

A discussão política sobre carisma e liderança de Montenegro ou maturidade e ideologia de Pedro Nuno Santos é quase irrelevante. O mais importante é a reforma do regime e proteção das instituições.

Agora é oficial, Marcelo Rebelo de Sousa vai avançar para a dissolução do Parlamento na sequência do pedido de demissão de António Costa, mas só após a aprovação desta proposta de Orçamento do Estado para 2024, com cinco argumentos, uns sólidos, outros aceitáveis (e riscos por identificar). A decisão do Presidente permitirá abrir um novo ciclo político de um regime que, no mínimo, está doente, parece regressado a 2011 e a Sócrates e esteve a um passo de cair numa espécie de ‘mexicanização’.

Comecemos pelo fim, pela solução proposta por António Costa a Marcelo Rebelo de Sousa e que foi, felizmente, rejeitada. O primeiro-ministro demissionário entende que seria possível, depois de tudo o que se sabe desde há uns dias, manter um Governo em funções com o suporte do PS no Parlamento, liderado por Mário Centeno.

Portanto, o homem que nunca deveria ter passado do Governo para a liderança de uma instituição independente como o Banco de Portugal — e que jura que exerce a função de forma independente — poderia agora voltar ao Governo como novo primeiro-ministro. Haverá mais promiscuidade, mais ‘mexicanização’ do regime do que isto? As ‘revolving doors’ na sua máxima expressão, um líder partidário dono disto tudo, ao ponto de considerar que tinha condições para decidir a sua própria sucessão, com a evidência que já todos sabíamos: O Banco de Portugal não é hoje uma instituição independente quando o seu governador aceita ser chamado por quem já o tinha nomeado ministro. E isto diz muito também sobre Centeno.

Pior, o que se sabe ao fim de apenas uns dias de notícias sobre o processo ‘Influencer’ permite-nos dizer que a demissão de António Costa não era só necessária como obrigatória, e nem precisava do famoso último parágrafo sobre um inquérito a um alegado envolvimento do próprio primeiro-ministro. Costa usou a justiça para se vitimizar, quase recuperou a tese da cabala de Sócrates (uma ironia, para não dizer outra coisa…), seguramente a pensar nas presidenciais de 2026. À porta do Rato, afrontou o Presidente, mostrou a sua natureza. num confronto que vai prolongar-se por meses.

O PS que andou à volta de Costa, ou parte dele, revela-se, afinal e tragicamente, mais parecido com o de Sócrates na sua pior face do que o que gostaríamos de acreditar. As cumplicidades e promiscuidades estão aí, e quando se sabe que o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária, tinha quase 76 mil euros em dinheiro vivo, espalhado por envelopes e escondido em vários livros, na Residência Oficial do primeiro-ministro só podemos recordar as fotocópias de outros tempos. E este ‘inner circle’ foi construído à medida e imagem do seu líder.

A decisão de Marcelo era difícil, pela forma como tudo se passou. Mas a dissolução era inevitável. As cinco razões invocadas por Marcelo são razoáveis, até a aprovação da proposta de Orçamento para 2024, por causa da redução do IRS (já o PRR não tem nada a ver com isso, são outras contas). Mas têm riscos.

Por um lado, ao querer a aprovação do orçamento e ao dar tempo ao próprio PS para aprovar uma nova liderança, Marcelo mantém um primeiro-ministro demissionário em funções pelo menos até 10 de março. Isto se sair uma solução estável logo ali. Serão quatro meses a gerir um país, num tom de confronto com o Presidente que vai aumentar, a preparar a gestão política da sua saída de cena e a pensar no regresso.

Os últimos dois anos de governação foram penosos a vários níveis, e não vale a pena justificarem tudo com a pandemia e a guerra. Mesmo sem ter ainda o contraditório dos visados, o que já descobrimos na última semana é trágico, um pesadelo que nos faz temer o regresso ao pior de Sócrates. O PS vai ter de fazer um novo exame de consciência ao partido que é, e ao que quer ser. Acima de tudo, a discussão política e mediática sobre o carisma e liderança de Luís Montenegro ou a maturidade e ideologia de Pedro Nuno Santos é quase irrelevante. Neste momento, o mais importante é a reforma do regime, a proteção das instituições, da qualidade da Democracia, qualquer que seja a competência de quem vier a seguir.

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