Marx, o Socialismo do Milénio e a Cidade de Ouro
A ideia de “democratizar” a economia, a sociedade, os costumes, encerra uma piedosa petição a favor da descentralização do poder, num afastamento da centralização na boa doutrina socialista.
Marx está sepultado no cemitério de HighGate em Londres. No espaço de duas semanas o monumento que assinala a presença do filósofo é vandalizado por duas vezes. Na primeira incursão, um martelo empunhado pela mão esquerda flagela a lápide de mármore que decora o monumento, com particular ênfase no nome do filósofo. A placa pertence à sepultura original de 1883 e está apensa ao actual memorial desde 1954. Não estando o memorial coberto pelo seguro, o acto de “comentário político” ou de “protesto político”, constitui uma ofensa economicamente relevante e historicamente insubstituível. Na segunda ofensiva, o monumento foi coberto por inscrições a tinta vermelha, pretendendo salientar a mensagem e o legado político de Marx – “Doutrina do Ódio”; “Arquitecto do Genocídio”; “Memorial ao Holocausto Bolchevique”; “66,000,000 de mortos”. O espírito do filósofo parece não estar imune às ofensivas mais miseráveis e materialistas.
O socialismo de Marx é observado por muitos comentadores como sinónimo de erro político, desastre económico e supressão da liberdade. Embora o filósofo fale da substituição do “reino da necessidade” pelo “reino da liberdade” como expressão de um ideal de igualdade, este fascínio transformou-se na distopia do socialismo real. O socialismo do novo milénio recicla a ideia de um ideal de igualdade, acrescenta-lhe o verde do ambiente, a preocupação com o aquecimento global, os interesses instalados, a divisão entre os cidadãos e as elites, e sobretudo uma visão milenar e catastrofista do estado da economia global. Com uma agenda impulsionada por um conceito de igualdade radical, que não se centra exclusivamente na dimensão económica e na questão da redistribuição da riqueza “ilegitimamente acumulada”, mas que exponencia a erradicação de todas as desigualdades em todos os campos da actividade e da expressão humana. Em bom rigor para o socialismo do milénio não existem desigualdades naturais, mas sempre e apenas desigualdades artificiais criadas e aumentadas perpetuamente por uma sociedade injusta por intenção, preconceituosa por tradição, exclusiva por natureza.
A ideia de “democratizar” a economia, a sociedade, os costumes, encerra uma piedosa petição a favor da descentralização do poder, de todos os poderes, num flagrante afastamento do imperativo da centralização na boa doutrina socialista. A ignorância, a falta de memória, talvez a ingenuidade, tudo converge num projecto pioneiro de destruição das estruturas políticas e económicas em prol de uma perspectiva política positiva em direcção a uma lógica de autogestão. Mas no final, a autogestão não passa da execução obediente das directrizes emanadas de uma nova versão do Estado como realização do indivíduo, da verdade e da justiça. O socialismo do milénio é o figurino Dolce & Gabbana do Estado como garante último e único do Código da Natureza.
O que há de novo neste socialismo é o que há de velho no outro socialismo. As desigualdades naturais não existem, a falência da igualdade é sempre uma manifestação perversa das desigualdades artificiais que podem e devem ser corrigidas e eliminadas. A atitude relativamente à igualdade não pode ser encarada nem explicada apenas pela adopção de um critério económico de repartição da riqueza, mas efectivamente pela conjugação de uma visão politicamente inclusiva que venha a realizar o nivelamento das origens sociais, dos contextos geográficos, da diferença de capacidades, da diferença dos propósitos e dos fins a atingir, da diferença dos meios e da determinação colocados ao serviço desses fins. O critério de repartição alcança toda a sociedade constituída, todas as vertentes e vicissitudes da sociedade como expressão premonitória de um ideal harmonioso entre o Bem, o Belo e o Justo. E embora esta atitude política possa ser racionalizada, o socialismo do milénio será sempre a expressão de uma predisposição para o emotivismo político.
Nesta opção política extrema os temas e as acções políticas têm uma dignidade e um valor que é independente da veracidade dos factos sociais, pela razão objectiva de que as desigualdades são o contorno do costume, da tradição e da força do passado. Para o socialismo do milénio a vida em sociedade é um eterno começo ao alcance de um gesto da geração iluminada, uma deslocação política em que a realidade dos factos sociais é ultrapassada pelo “artificialismo” de uma visão política perfeita.
No cenário da Cidade de Chumbo, a geração protagonista do socialismo do milénio toma a seu cargo a construção da Cidade de Ouro, a edificação da Cidade do Sol, assume a responsabilidade de viver politicamente em comum a vanguarda de uma sociedade moralmente radical e pós-capitalista. O socialismo do milénio é uma espécie de seita herética que luta pelo advento de uma nova Jerusalém ressuscitada.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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