Meta quê?

  • Pedro Barosa e Maria Eduarda Borges
  • 8 Junho 2022

A "maçada" que possa resultar para as investigações em curso poder-se-ia ter evitado caso o legislador tivesse adotado mecanismos que obviassem aos juízos de inconstitucionalidade feitos pelo Tribunal

O Tribunal Constitucional decidiu, através do Acórdão n.º 268/2022, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do art. 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o art. 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do art. 35.º e do n.º 1 do art. 26.º, em conjugação com o n.º 2 do art. n.º 18.º, todos da Constituição da Constituição da República Portuguesa (a “CRP”), e declarar, também com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do art. 9.º da mesma Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do n.º 1 do art. 35.º e do n.º 1 do art. 20.º, em conjugação com o n.º 2 do art. 18.º, todos da CRP.

Ainda que porventura com uma fundamentação não propriamente coincidente com a que fora avançada pela Provedora de Justiça para sustentar o seu pedido, a verdade é que este lhe foi concedido, na sua plenitude.

Detendo-nos, por partes, em cada um dos preceitos que viram posto um fim à sua (pelo menos total) vigência, prevê(ia?) o art. 4.º os tipos ou classes de dados que poderiam ser tratados ao abrigo da referida Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.

Assim, a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho – e a expressão «metadados», que terá já um lugar garantido no «top 3» das palavras do ano – não incide sobre, nem se destina a assegurar o armazenamento ou a captação do conteúdo das comunicações, dizendo apenas respeito aos chamados dados de base e dados de tráfego. Estes têm que ver, em suma, com as circunstâncias em que as conversações ocorrem. Isto é, referem-se à identificação do utilizador de certo equipamento (por exemplo, nome, morada, número de telefone), bem como à localização do utilizador, à localização do destinatário, à duração da utilização, data e hora, e frequência das comunicações.

Estes tipos de dados – previstos no referido art. 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho – são os tais que deveriam ser conservados por um período de 1 (um) ano a contar da data da conclusão da comunicação.

Logo aqui, diga-se com franqueza, não teve o Tribunal Constitucional de fazer grandes acrobacias para concluir que havia um pequeno (grande) problema com o armazenamento para eventual posterior tratamento em caso de suspeitas pela prática de um crime grave (favor consultar art. 2.º, n.º 1, al. g) e art. 3.º, n.º 1 da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho): é que o legislador ordinário tinha-se «esquecido» de estabelecer a obrigação de o armazenamento dos dados ter de ocorrer no território da União Europeia, o que violaria a CRP e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, pois não se garantia uma adequada proteção contra a potencial devassa dos dados em causa…

Portanto, afigura-se-nos elementar que as disposições contidas nos arts. 4.º e 6.º da Lei n.º 38/2008, de 17 de julho já estariam perfumadas de inconstitucionalidade.

A acrescer, o Tribunal Constitucional considerou também que, se até não era por demais ofensivo e invasivo manter os registos dos dados de base (aqueles que se prendem só com a identificação do utilizador de um certo equipamento) pelo prazo de 1 ano, a história já era diferente quando estivessem em causa os dados de localização (relacionados com a posição e os movimentos dos utilizadores) e/ou os dados de tráfego (relacionados, por exemplo, com os sítios da internet frequentados, a sua duração, etc.).

Estes elementos, por permitirem traçar, até determinado ponto, o perfil do utilizador, já colidiriam, de forma desequilibrada – e, por isso, desproporcional – com o direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado na CRP e na sua interpretação conforme ao direito europeu, tanto mais que o armazenamento em causa atingiria qualquer pessoa, viesse ela a ser, ou não, visada numa investigação criminal. Não assistiria, portanto, como concluiu o Tribunal Constitucional, razão de ser ao critério discricionário adotado pelo legislador.

Já no que respeita ao art. 9.º da Lei n.º 38/2008, de 17 de julho (que prevê a transmissão dos dados conservados a requerimento do Ministério Público e depois de proferido despacho fundamentado pelo juiz de instrução nesse sentido), o calcanhar de Aquiles era o facto de o visado cujos dados eram conservados e subsequentemente transmitidos à entidade competente para investigação em processo penal, em momento algum ser notificado dessa transmissão para, querendo, a ela poder reagir. É verdade que as pessoas poderiam, por sua própria iniciativa, questionar se os seus dados haviam sido difundidos, mas é claro que isso não acontece na prática – aqui foi mesmo um tiro no porta aviões da Provedora de Justiça.

De facto, não se descortina qual o entrave potencial ao desenvolvimento da investigação que teria o conhecimento (ainda que diferido ou postergado para momento ulterior) de parte do respetivo titular, da transmissão dos metadados às autoridades de investigação criminal.

Também o destino do art. 9.º da Lei n.º 38/2008, de 17 de julho estava, assim, selado.

Certo é que esta decisão do Tribunal Constitucional tem vindo a ser muito contestada, dando até a impressão de que alguns a consideram quase escandalosa – o que não podemos deixar de estranhar: afinal de contas, a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março – que foi precisamente transposta pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho – foi anulada pelo Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 8 de abril de 2014 (o famoso Acórdão Digital Rights Ireland). Devendo o Tribunal Constitucional interpretar a Constituição (também) à luz dos princípios de Direito europeu, será que se pode dizer que o Acórdão n.º 268/2022 é uma surpresa?

De facto, a «maçada» que possa resultar para as investigações em curso – que tanto clamor tem despoletado – poder-se-ia ter evitado caso o legislador tivesse adotado mecanismos que obviassem aos juízos de inconstitucionalidade feitos pelo Tribunal…

A verdade é que, considerando os «kind reminders» feitos pela Provedora de Justiça já em 2019, os “queixinhas” têm muita sorte de os processos transitados em julgados estarem a salvo.

  • Pedro Barosa
  • Sócio contratado da Abreu Advogados
  • Maria Eduarda Borges
  • Associada da Abreu Advogados

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