Na melhor seda cai a nódoa

Haverá maior sintoma de que continuamos numa crise profunda do que ver a nossa existência e utilidade reduzidas à tentativa de escapar a nova bancarota?

Segunda-feira

O Dia Mundial da Poupança tem servido entre nós para duas coisas: para recordar uma coisa rara que nos faz muita falta e para mostrar como continuamos a chumbar no exame de literacia financeira. Porque não poupamos mais? Decerto porque os rendimentos são baixos.

Mas essa nem será a principal razão. Basta recuar poucos anos e verificar que foi durante o período da troika, com fortes e generalizados cortes no rendimento disponível das famílias, que a poupança atingiu máximos de muitos anos quando a lógica mais apressada nos faria prever o contrário.

Perante a incerteza, o receio do futuro e o aumento do risco de desemprego, muitas famílias fizeram um esforço para colocar mais algum dinheiro de lado. Provavelmente deixaram de comprar algumas coisas que nem faziam assim tanta falta.

A questão é essencialmente cultural, de incentivos errados das políticas públicas ao longo de décadas e de manifesta iliteracia financeira. E este é um dos défices que têm contribuído para que o país se vá arrastando, anémico, de crise em crise.

A falta de noções básicas e rudimentares sobre questões económicas e financeiras não atrapalha apenas a gestão do orçamento doméstico, incapacitando o cidadão comum de negociar devidamente a taxa de juro com o banco ou escolher um plano de complemento de reforma.

Cidadãos pouco informados são também menos exigentes com a classe política, com as propostas dos partidos e ficam mais vulneráveis a populismos. Só seremos uma sociedade adulta quando desconfiarmos do bacalhau vendido a pataco e estiver generalizada a noção de que as dívidas de hoje são os acréscimos de impostos de amanhã.

Por isso, só podem louvar-se os esforços para começar a explicar os rudimentos da poupança aos mais novos, como o ECO nos contou.

Quarta-feira

A saga da La Seda não diz nada à generalidade dos contribuintes. Mas todos vamos agora pagá-la através da Caixa Geral de Depósitos. Neste dia, ficámos a saber que esse investimento pode custar 900 milhões de euros ao banco público.

O que correu mal? Tudo, a começar pelas decisões de crédito da Caixa politicamente orientadas. O banco começou por deter uma posição minoritária de 4% mas desde aí não mais parou de reforçar no capital, de conceder ou garantir empréstimos de centenas de milhões. Até ao colapso.

Este foi um daqueles investimentos-bandeira da era Sócrates: uma fábrica de produtos químicos de 400 milhões de euros, de Sines para o mundo.

Vale a pena recuar oito anos até ao dia 13 de Março de 2008, quando foi feito o lançamento da primeira pedra, a merecer, claro, honras de governo, de telejornais e de promessas de futuros radiosos.

José Sócrates, primeiro-ministro: “É um investimento para colocar Portugal na rota e no mapa da economia global do sector petroquímico e que se destina a vender para todo o mundo, e a fazê-lo com valor acrescentado”; “O Estado português tem bem consciência do que Sines significa e, por isso, algumas obras são decisivas para Sines e para o país. Teremos aeroporto de Beja até ao final do ano” [prova de que uma desgraça nunca vem só].

Manuel Pinho, ministro da Economia: “vai exportar cerca de 500 milhões de euros por ano e criar cerca 400 empregos directos e indirectos contribuindo também para atrair outros investimentos para a região”.

Faria de Oliveira, presidente da CGD: “é um investimento eminentemente instrumental para apoiar a economia nacional e o investimento industrial”.

Três anos depois, a troika estava a caminho. A Caixa permanece nos cuidados intensivos.

Quinta-feira

Mário Centeno está a tornar-se um político. Isso foi visível no arranque da discussão do Orçamento do Estado para 2017, no plenário da Assembleia da República. Cada vez mais solto, mais confiante e com os recursos oratórios e narrativos próprios da discussão parlamentar: o que corre bem ou menos mal é mérito do governo e dos seus orçamentos; o que corre mal é culpa da conjuntura internacional e do anterior governo.

Por contraste, o PSD está cada vez mais enredado numa lógica de discussão de “mercearia”, imperceptível para a generalidade das pessoas, e aparece penosamente a defender posições contraditórias só para tentar contrariar o governo.

De um lado e do outro não se vê uma ideia para o país, o esboço de um caminho, uma luzinha de esperança. A única coisa que os ocupa é a discussão sobre como vamos pagar as contas, manter o financiamento da dívida e a porta do estabelecimento aberta. Isto é importante, mas é apenas instrumental.

Haverá maior sintoma de que continuamos numa crise profunda do que ver a nossa existência e utilidade reduzidas à tentativa de escapar a nova bancarota?

Sexta-feira

António Domingues e os seus pares na administração da Caixa Geral de Depósitos devem ser pagos a valores de marcado e, como gestores públicos que passaram a ser, devem cumprir as regras de transparência aplicadas a esses cargos. O salário é a retribuição dos contribuintes à competência e profissionalismo na gestão do “seu” banco. A entrega da declaração de rendimentos é uma obrigação de transparência deles perante esses mesmos contribuintes.

Do folhetim em curso já não haverá uma saída limpa. Ou os gestores da Caixa acabarão contrariados e, por isso, desautorizados publicamente (e se o governo lhes garantiu o contrário, é uma questão que têm resolver com quem os convidou). Ou eles impõem a reserva sobre os seus rendimentos passados e acabarão sob suspeita, beneficiando de um privilégio desenhado à medida e com a sua autoridade moral também fragilizada.

Estas polémicas servem também para perceber que a imaginação contorcionista não tem limites. Já há propostas para que as declarações sejam entregues ao Tribunal Constitucional mas não possam ser consultadas publicamente – serviriam então para quê? Para que os juízes do TC tivessem assunto de conversa ao jantar lá em casa?

Ou então, sugere-se agora, as declarações devem ser depositadas no TC mas a sua consulta pública apenas poderia ser feita no final do mandato.

Há muitos anos, Bill Clinton esquivou-se da clássica pergunta feita aos candidatos presidenciais americanos sobre o consumo de haxixe dizendo que tinha fumado mas não tinha inalado. Por cá somos mais criativos: podemos inalar sem fumar. Se as instituições não se dão ao respeito como querem ser respeitadas?

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