Novos modelos de gestão do sistema elétrico
Inverter a visão tradicional do sistema elétrico não só está mais alinhado com a descarbonização como abre espaço à inovação e a novos modelos de negócio ligados à gestão do sistema.
Se perguntarmos à E-REDES, o operador da Rede Nacional de Distribuição de eletricidade (ORD), qual a capacidade disponível para ligação à rede de distribuição de novos projetos de produção de eletricidade, o ORD dirá que são vários GW. Se fizermos a mesma pergunta à REN, o operador da Rede Nacional de Transporte de eletricidade (ORT) e gestor global do Sistema Elétrico Nacional (SEN), a resposta será diferente e, haja ou não capacidade disponível para injeção de energia elétrica, essa capacidade será, não raras vezes, inferior à determinada pelo ORD. Quem manda? Quem tem a última palavra?
Se o SEN for visto de cima para baixo, de modo hierárquico e unidirecional, com a produção de um lado, a rede de transporte e a rede de distribuição pelo meio e, por fim, do outro lado, os consumidores, quem tem a visão sistémica é o gestor global do SEN, logo tem a palavra final. No caso português, de acordo com esta visão do SEN, manda sobretudo a REN, com a capacidade disponível a ser aquela que a REN disser que existe, diga a E-REDES o que disser. Será que tem de ser assim? Não necessariamente. E sobretudo não deveria.
Imaginemos um sistema elétrico no qual há volumes crescentes de produção de eletricidade ligada em diferentes níveis de tensão da rede de distribuição. E agora imaginemos esse sistema visto ao contrário do tradicional, isto é, de baixo para cima. Nesse caso, não assistimos apenas à descentralização da geração, com o sistema a deixar de poder ser descrito como tendo geração de um lado, redes pelo meio e o consumo do outro lado, mas também à necessidade de descentralizar a própria gestão do sistema. Nesta nova visão, o sistema deve ser entendido de forma descentralizada, como um sistema de sistemas, com fluxos energéticos muito mais complexos, mas, também, com formas de gestão distintas das tradicionais.
Nesta visão alternativa do sistema elétrico, o equilíbrio global continua a ter de existir, porque a física não mudou, e este continua a ter de ser assegurado pela REN, o gestor global do sistema. Mas, como estamos perante um sistema de sistemas, a palavra final da REN não tem de ser a inicial, porque parte do trabalho da REN, como gestor global do SEN, é gerir e conciliar a nível global o que a E-REDES, a nível local e de modo descentralizado, subsidiariamente, não consegue debelar. Ao invés de uma gestão hierárquica, vertical e absoluta, dominada somente pela REN, passamos uma gestão mais colaborativa, que obedece ao princípio da subsidiariedade.
Regressemos à questão com que iniciámos este artigo. Se o ORD disser que há muito mais capacidade de acomodar novos projetos de produção na rede de distribuição do que aquela que existe e pode ser acomodada na rede de transporte, será que o limite deve continuar a ser definido pelo ORT/gestor global do SEN? Sim e não. Sim, porque o que chegar à rede de transporte para gerir tem de respeitar os limites definidos pela REN, que procura de forma sistémica, em tempo real, equilibrar a operação do SEN, no papel de gestor global do SEN. E não, porque alguns fluxos de energia iniciados na rede de distribuição não só podem não chegar à rede de transporte, em todo ou em parte, sendo plenamente contidos ao nível da distribuição, como podem, ainda, ser geridos de outro modo.
E como se geriria, na prática, este sistema? Idealmente, com forte colaboração entre a REN e a E-REDES, que torne visível a capacidade existente, seja ao nível da rede de distribuição, seja ao nível da rede de transporte de eletricidade. Esta visibilidade, que pressupõe a digitalização de todo o sistema e a disponibilização, em tempo real, de informação a terceiros, permite perceber a capacidade de ligação realmente existente, bem como restrições aplicáveis a essa capacidade.
Deste modo, com muito maior transparência e partilha de informação em tempo real, seria possível, quer para a Direção-Geral de Energia e Geologia, que licencia as ligações às redes elétricas, quer para quem se quer ligar à rede, saber quais as condições, efetivamente, existentes nas diferentes zonas das redes e com que restrições. Se, por exemplo, numa determinada zona de rede ao nível da distribuição há capacidade de injeção disponível, mas não no nível do transporte, seria possível ligar novos projetos de produção de energia elétrica desde que toda a eletricidade produzida fosse consumida e/ou armazenada localmente, sem afetar o nível do transporte, correndo o risco de ser cortada pela REN apenas os fluxos de eletricidade que interfiram com a operação segura do SEN. E mesmo esta operação segura não exige, inexoravelmente, uma intervenção da REN, podendo o mesmo resultado ser assegurado, de um modo distinto, mas mais eficiente.
Esta visão permitiria acelerar a integração de renováveis, mas poderia criar um problema de congestionamento adicional nas redes. Na visão tradicional do que deve ser o planeamento e gestão dos sistemas elétricos, esse constrangimento deve ser evitado, porque põe em causa a segurança da operação. É, portanto, um problema a ser resolvido a montante, através do planeamento adequado do investimento nas infraestruturas das redes (CAPEX).
Um sistema bem planeado é visto como um sistema que evita certos problemas, de modo prioritário, através de CAPEX. Em alternativa, a um problema a ser mitigado a montante, numa lógica de aversão quase absoluta ao risco, podemos entender a pressão adicional sobre as redes e sua gestão como oportunidades de otimização a jusante, na operação em tempo real, via remuneração por prestação de serviços de flexibilidade, ou seja, custos operacionais do SEN (OPEX). Com as tecnologias digitais atuais, incluindo a inteligência artificial, otimizar a capacidade de rede existente a operando mais perto dos seus limites físicos, reduzindo certas margens técnicas, não põe, necessariamente, em risco a operação segura das redes elétricas, antes deve ser entendida como forçando o surgimento de soluções inovadoras, como mercados locais de flexibilidade, que permitem maximizar a utilização dos ativos existentes, reduzindo os custos globais do SEN.
Inverter a visão tradicional do sistema elétrico não só está mais alinhado com a realidade presente da geração e com os desafios futuros da descarbonização, acelerando a integração de renováveis e a descarbonização do sistema elétrico, minimizando custos, mas tem a enorme vantagem abrir espaço à inovação e a novos modelos de negócio ligados à gestão descentralizada, digital e flexível do sistema. E é inteiramente possível apostar nessas formas de inovação, sem assumir risco excessivo que ponha em causa a segurança do sistema elétrico.
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