
O adeus desejável e necessário ao “governador-comentador”
O Banco de Portugal não pode continuar a ser um palco de ambições pessoais nem um espaço onde se esbate a fronteira entre técnica e política.
Desde 2020, o Banco de Portugal atravessa um ciclo atípico, marcado por excesso de exposição pública, fragilidade institucional e declínio da sua autoridade. No centro desta evolução está a liderança do actual governador, cuja forma de exercer o cargo rompe com os princípios que tradicionalmente norteiam uma autoridade monetária: discrição, neutralidade e exigência técnica.
A nomeação de Centeno, apenas um mês após deixar o cargo de ministro das Finanças, acentuou desde o início a perceção de promiscuidade entre funções políticas e responsabilidades institucionais. Embora legal, essa transição imediata comprometeu a ideia de independência efetiva — um valor essencial para a credibilidade de qualquer banco central. A proximidade ao poder político não se esbateu com o tempo; pelo contrário, foi reforçada por um estilo de comunicação pública pouco habitual entre governadores europeus.
Centeno assumiu uma presença ativa no espaço mediático, com artigos como “Encruzilhada de políticas”, “Praise to the euro area labor market” ou “It’s the economy”, publicados diretamente a partir do gabinete do governador. Embora em tom analítico, estes textos revelam uma forte componente opinativa, levantando dúvidas sobre a separação entre a função técnica e a intervenção política. A isso somam-se apresentações públicas com comentários sobre a política monetária do BCE — como a de 2024 na LSE — e declarações que antecipam decisões do Governing Council, como em março de 2025, ao afirmar que “já há condições para baixar as taxas de juro”.
Estas intervenções rompem com a contenção tradicional dos governadores, expondo o banco a uma vulnerabilidade desnecessária. Um banco central não é um fórum de comentário económico, nem deve servir de palco para ambições políticas. Durante algum tempo, especulou-se sobre o futuro de Centeno: fosse em Bruxelas, no FMI ou mesmo como potencial candidato presidencial. Num contexto assim, utilizar o cargo de governador para intervir publicamente com frequência e em registos híbridos entre análise e opinião reforça a ideia de personalização do cargo e fragiliza a autoridade institucional do banco. A confiança dos agentes económicos e dos parceiros internacionais depende precisamente da perceção de neutralidade, rigor técnico e estabilidade institucional. Quando um governador se comporta como comentador, esses fundamentos ficam comprometidos.
A tensão, contudo, não se limita à esfera externa. Internamente, a liderança de Centeno tem sido acompanhada por episódios que deterioraram o ambiente de trabalho e levantaram dúvidas sobre a liberdade de expressão técnica dentro da instituição. Em agosto de 2023, o economista João Valle e Azevedo foi suspenso por ter colaborado com um programa partidário — uma decisão controversa, sobretudo porque os regulamentos do banco não proíbem esse tipo de participação. Em dezembro, o Gabinete de Conformidade concluiu que não havia base legal para a suspensão. Ainda assim, o ambiente tornou-se insustentável e Valle e Azevedo acabaria por abandonar o banco, sendo depois eleito deputado.
Pouco tempo depois, Nuno Alves — então diretor do Departamento de Estudos Económicos e figura amplamente respeitada — foi alvo de uma averiguação interna. Coincidência ou não, era alguém que tinha defendido a permanência de Valle e Azevedo no banco. O processo seria arquivado, mas deixou marcas. Instalou-se um clima de autocensura, com técnicos mais reservados em expressar opiniões que pudessem ser vistas como divergentes.
Estes episódios refletem também uma tensão mais antiga entre Centeno e o Departamento de Estudos Económicos — estrutura que ele nunca chegou a liderar, apesar de expectativas (do próprio) nesse sentido. Esse ressentimento pode ter moldado, em parte, a sua relação com a área técnica do banco. Como observou o ex-ministro Braga de Macedo numa entrevista à Rádio Renascença, Centeno “está a fazer mal ao Banco de Portugal”. A crítica, longe de ser isolada, tem eco crescente, à medida que o banco se afasta da sua tradição de reserva institucional e se aproxima de uma lógica centrada na figura do governador.
A esta erosão institucional soma-se a prolongada ausência de produção científica de Mário Centeno, que não publica em revistas académicas com revisão por pares desde 2014. Ao contrário de homólogos como Isabel Schnabel, Robert Holzmann, Gabriel Makhlouf ou Pierre Wunsch, presença regular em publicações académicas, Centeno optou por intervir apenas através de artigos de opinião, sem o escrutínio metodológico da academia. Esta ausência enfraquece a reputação intelectual do Banco de Portugal e limita a sua influência técnica nos fóruns europeus. Num contexto de responsabilidades críticas — supervisão financeira, análise económica, representação no BCE —, a liderança do banco exige independência, isenção e prestígio técnico.
Neste contexto, a eventual recondução de Centeno, cujo mandato termina agora em julho de 2025, seria um erro. A sua governação comprometeu a credibilidade técnica do banco, deteriorou o ambiente interno e desviou o foco institucional para um protagonismo mediático contraproducente. A escolha de manter o atual governador seria a confirmação da degradação da autonomia e prestígio da instituição.
Felizmente, Portugal dispõe de alternativas de grande qualidade. Ricardo Reis, professor na LSE, é uma das vozes mais respeitadas da macroeconomia internacional, com uma carreira académica sólida e reputação impecável. Vítor Gaspar, prestes a concluir funções no FMI, combina experiência institucional e autoridade técnica, sendo um nome bem reconhecido. Outros nomes, como João Moreira Rato ou Cristina Casalinho — ambos com experiência relevante à frente do IGCP —, também ofereceriam competência, independência e conhecimento profundo dos mercados financeiros e das finanças públicas.
Por contraste, soluções internas como Máximo dos Santos ou Clara Raposo não parecem adequadas neste momento. Não por falta de mérito individual, mas porque a atual conjuntura exige uma rutura clara com o passado recente. Depois de anos de desgaste institucional, o Banco de Portugal precisa de alguém de fora, com credibilidade internacional, autoridade técnica inquestionável e independência real. Nomeações motivadas por critérios de continuidade ou por agendas simbólicas — como a diversidade de género — devem ser evitadas se não vierem acompanhadas de mérito evidente. A legitimidade institucional constrói-se com competência, não com representações.
O Banco de Portugal não pode continuar a ser um palco de ambições pessoais nem um espaço onde se esbate a fronteira entre técnica e política. A recondução do atual governador seria um erro histórico. O país tem quadros altamente qualificados e uma oportunidade clara de reverter o rumo dos últimos anos. Acredito que, com o novo governo fortalecido eleitoralmente, existirá finalmente a vontade política necessária para tomar a decisão certa — aquela que devolva autoridade, exigência e dignidade a uma das instituições-chave da democracia portuguesa.
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