O caso insólito e simbólico da “Comporta regulatória”

O diploma continua a ser relevante, como mostra o nosso mau posicionamento em matéria de carga administrativa e regulamentar, pelo que não há desculpas para que a sua implementação não se faça.

Na próxima semana será divulgado um position paper, do qual sou coautor, onde se mostra que Portugal está mal posicionado em matéria de obstáculos regulamentares e barreiras à concorrência no mercado de produto (bens e serviços), tendo como base uma análise comparada detalhada do índice de regulação PMR (Product Market Regulation) da OCDE, divulgado em julho de 2024. Trata-se de informação muito relevante que não vi analisada com a profundidade necessária nos media nessa altura. O artigo aborda uma pequena parte dos resultados do position paper nº 1 de 2025 do Gabinete de Estudos Económicos, Empresariais e de Políticas públicas (G3E2P) da Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), servindo como ‘pré-lançamento’ de alguns dos temas tratados.

O nosso índice PMR até melhorou (baixou) em termos absolutos entre 2018 e 2023, mas a verdade é que os outros países também evoluem e continuamos muito mal posicionados tanto na OCDE como na União Europeia, o que chama a atenção para a necessidades de reformas estruturais e processuais de melhoria contínua para tornarmos a nossa regulação mais eficiente e elevarmos a nossa competitividade.

As principais áreas em que estamos mal posicionados (pior do que a mediana de países em ambas as áreas de referência) são:

  • A avaliação do impacto das regulações quanto ao efeito na concorrência;
  • As distorções induzidas pela propriedade pública quanto ao seu âmbito e no que se refere a vários aspetos da governação das empresas públicas;
  • A contratação pública;
  • As barreiras à entrada no setor dos serviços;
  • A carga administrativa e regulamentar.

O estudo faz 40 recomendações, sobretudo nestas áreas de maior preocupação – e nalgumas noutras em que até estamos bem posicionados numa perspetiva geral, mas com falhas conhecidas indo a um detalhe superior ao permitido pela OCDE (tendo em conta informação suplementar que é pública). Neste artigo breve vou-me focar sobretudo na questão do excesso de carga administrativa e regulamentar, sempre referido pelas empresas como um dos principais custos de contexto da nossa economia.

Para ‘aguçar o apetite’, vou-me deter num caso, no mínimo insólito, mas paradigmático a este nível.

O mecanismo de “Comporta regulatória” – regra ‘one-in, one-out’: sempre que um novo ato normativo crie custos de contexto, um outro de custo equivalente deverá ser eliminado –, previsto há mais de 10 anos por imposição da Troika de credores no âmbito do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF), para melhorar a competitividade e ambiente de negócios da nossa economia, nunca terá sido implementado. Este adiamento sine dia é o retrato perfeito do imobilismo e da pouca ambição dos sucessivos governos em matéria de eficiência regulamentar e da própria reforma do Estado.

Na mesma altura, também por iniciativa da Troika, foi introduzido o “Teste PME” (avaliação do impacto de nova legislação nas PME), mas, nesse caso, foi condicionalidade autónoma do Acordo de Parceria com a Comissão Europeia relativamente ao Portugal 2020, pelo que a pressão externa para a implementação foi maior e imediata. Mais tarde, o “Teste PME” foi inserido no mecanismo de avaliação prévia do impacto da legislação “Custa Quanto?”, criado em 2017. Neste caso, o problema é de reporte, pois não há relatórios de execução conhecidos do “Teste PME” e relativamente ao “Custa Quanto?” só se conhece um datado de 2018, embora seja de assinalar que a OCDE acompanhou e certificou a melhoria do processo legislativo na introdução desse mecanismo, pelo que terá havido algum progresso a esse nível, mas mais poderá ser feito como proposto (incluindo avaliar o efeito na concorrência), para maior impacto.

Vejamos o historial conhecido da “Comporta Regulatória” no nosso enquadramento jurídico (basta pesquisar no Diário da República eletrónico, de acesso público online).

O mecanismo de “Comporta regulatória” foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 72/2014, de 13 de maio – pouco tempo depois da nossa saída bem-sucedida do PAEF – e, que se saiba, não foi revogado, mas também nunca foi regulamentado, pelo que a sua implementação nunca ocorreu, tanto quanto se sabe.

Com efeito, segundo o diploma “a regra da Comporta Regulatória (…) está prevista no Memorando de Entendimento celebrado no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira (…). O detalhe das metodologias para aplicação do Teste PME e da regra da Comporta Regulatória será definido por resolução do Conselho de Ministros”. Se para o Teste PME foram definidas posteriormente metodologias em Conselho de Ministros, tal não terá acontecido para a Comporta Regulatória, pelo que carece de regulamentação para que possa ser implementada, ao que tudo indica.

A mudança de Governo passado pouco tempo da publicação do diploma terá contribuído para o seu ‘aparente’ esquecimento, mas tal não deve servir de desculpa, pois trata-se de uma medida de óbvio interesse público e cada Governo herda o acervo jurídico na passagem de testemunho do anterior e tem o dever de lhe dar seguimento, revogar ou alterar. Nada disso sucedeu neste caso, ficando a medida num ‘limbo’ regulamentar. Não é certamente caso virgem, haverá muitos outros exemplos (qualquer jurista saberá de muitos, não tenho grandes dúvidas), mas este terá, porventura, um impacto acima da média.

A medida continua a ser relevante, como mostra o nosso mau posicionamento em matéria de carga administrativa e regulamentar, pelo que não há desculpas para que a sua implementação não se faça, mas mesmo assim são precisas mais medidas nesta área.

De facto, todos os mecanismos referidos acima estão focados na avaliação de novos diplomas. Se quisermos um impacto mais amplo e estrutural em matéria de competitividade, precisamos também de mecanismos regulares para análise e revisão contínua da legislação e regulação existentes.

Considerando agora o conjunto da análise e das recomendações produzidas nas várias áreas, se as 40 propostas do estudo forem implementadas – ou mesmo apenas 20 mais importantes –, estou em crer que poderemos ter um impacto visível na melhoria do nosso índice PMR, com uma regulação mais eficiente e mercados mais concorrenciais, contribuindo para um aumento da competitividade e gerando efeitos positivos no crescimento económico e na elevação do nível de vida e bem-estar da população.

Relembro que, entre outros benefícios, a concorrência leva a preços mais baixos, beneficiando diretamente os consumidores, mas também as empresas em geral, que conseguem os seus inputs nos mercados de produto a preços mais competitivos, além de um maior equilíbrio entre empresas, como se explica no position paper.

Contudo, é também sublinhado que, por mais que Portugal melhore no índice PMR, nunca será competitivo se não baixar de forma expressiva a sua carga fiscal (isto porque o nosso esforço fiscal é dos mais altos da UE), em particular ao nível do IRC, em que temos a segunda maior taxa efetiva da UE. Tal pressupõe uma reforma profunda do Estado (que baixe o peso da despesa corrente), incluindo do sistema fiscal, sempre adiada. O conjunto de recomendações, visando a remoção dos obstáculos regulamentares e das barreiras à entrada nos mercados, insere-se dentro dessa reforma urgente do Estado.

O estudo – no contexto da área de impacto social da missão da FEP – dá um contributo relevante nessa área com exemplos de reformas que têm um impacto concreto na vida das pessoas e das empresas. A palavra ‘reforma’, tão vulgarizada, deve ter significado(s).

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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