O cisma de Centeno
Somos todos Centeno? Não, não somos. Vem isto a propósito da tese do ministro das Finanças sobre a carga fiscal e o PIB como base da receita fiscal e contributiva.
Sempre apreciei um bom debate entre pessoas civilizadas e, certamente, sempre apreciei pessoas inteligentes. Porém, do mesmo modo que me habituei a apreciar a inteligência como manifestação de racionalidade e sinónimo de reflexão, nunca apreciei a inteligência enquanto manifestação de sobranceria ou forma de espezinhamento. Lamentavelmente, são estes tiques de superioridade que vou observando ao senhor ministro das Finanças, agora também presidente do Eurogrupo, e que na minha opinião não lhe ficam bem.
Vem isto a propósito das últimas intervenções públicas de Mário Centeno e da entrevista que deu no passado fim de semana ao Expresso, na qual refutou o aumento da carga fiscal em 2017. Segundo o ministro, “[A] carga fiscal é um conceito muito antigo que sobrevive por ser útil, mas está desfasado da realidade. Mede o peso da receita fiscal e contributiva no PIB. Mas, a base que constitui a receita fiscal e contributiva não é o PIB. (…) Não estamos a pedir mais às pessoas em termos contributivos, não aumentou a carga fiscal no sentido efetivo, mas esse indicador que mede a carga fiscal e contributiva no PIB subiu”. Confuso? Somos todos Centeno? Não, não somos.
Antes de ir ao cerne da questão, quero deixar bem claro que o ministro das Finanças e a sua equipa devem ser reconhecidos pela obtenção das metas orçamentais de 2016 e 2017. É facto que já aqui discuti amplamente os meios utilizados, por isso, não regressarei a essa discussão.
Por um lado, porque fui dos primeiros em Portugal a alertar para as manobras orçamentais do Governo. Por outro lado, porque na política de hoje, goste-se ou não, os fins são mais importantes do que os meios. Além disso, num certo sentido, a utilização desses meios é também meritória, porquanto reveladora da sagacidade de quem conhece as matérias em que se movimenta e dos artifícios que estão à disposição.
Isto dito, há uma fronteira que me parece sagrada: que esse conhecimento, transformado em soberba, não sirva para (tentar) fazer dos outros parvos. Ora, é justamente aqui que o ministro é vítima das suas próprias contradições. Vejamos. Ainda na semana passada, por ocasião da apresentação do saldo orçamental de 2017, e quando confrontado com as críticas dos parceiros do Governo à redução da despesa pública (em percentagem do PIB), Centeno defendeu-se afirmando que, não senhor, a despesa pública, longe de ter diminuído, até tinha aumentado (nominalmente). Mas, se a argumentação sobre a despesa foi aquela, que dizer então do aumento nominal da carga fiscal (considerando receita fiscal e contributiva) de 3.410 milhões de euros (+5,0%) em 2017 face ao ano anterior? Um aumento nominal da carga fiscal que, sublinhe-se, representou também um aumento em percentagem do PIB.
Ao mesmo tempo, relativamente ao PIB, que o ministro afirmou não constituir a base da receita fiscal e contributiva, há que voltar aos manuais. E o que dizem os manuais sobre o PIB? Dizem que o PIB é o somatório do valor acrescentado bruto das empresas. É, aliás, desta definição que vem aquela velha máxima segundo a qual são as empresas que criam riqueza. O valor acrescentado bruto representa, assim, o valor da produção das empresas deduzida dos consumos intermédios ou, visto de outro prisma, é o rendimento sobrante da actividade empresarial que permite remunerar o trabalho, o capital e, também, o Estado.
Daqui decorre que a massa salarial dos trabalhadores – que em 2017 cresceu mais do que o PIB e que, segundo o ministro, terá causado o aumento da carga fiscal (na versão obsoleta do conceito, é claro!) – é, de facto, parte do PIB, pelo que, o PIB não pode ser outra coisa senão a base da receita fiscal e contributiva.
O conceito não está, afinal, obsoleto. Já a afirmação do ministro (“a base que constitui a receita fiscal e contributiva não é o PIB”), essa sim, está destituída de fundamento. Pior ainda, a afirmação desvaloriza ostensivamente as empresas – e sobre estas, é bom recordar que a receita de IRC em 2017 cresceu 10% – porque dá a ideia de que a massa salarial surge do nada ou então que se cria por decreto.
A afirmação também desvaloriza o facto de vários impostos indirectos, que não apenas o IVA, terem registado crescimentos superiores ao ritmo de crescimento da economia, evidenciando uma invulgar elasticidade fiscal dos impostos portugueses que o ministro também não detalhou.
Em suma, a aposta nos impostos indirectos tem constituído a coluna dorsal da estratégia fiscal deste Governo: em dois anos de governação PS, o PIB nominal cresceu 7%, as contribuições sociais 8%, os impostos directos 0,5%, e os impostos indirectos 15%. Não está em causa a estratégia fiscal do Governo que, assentando nos impostos indirectos, é a meu ver a boa estratégia. O que está em causa é apenas explicar por que razão aumentou a carga fiscal em percentagem do PIB, num período em que também o PIB cresceu com alguma expressão.
A razão é simples: porque as receitas de contribuições e impostos cresceram mais do que a riqueza gerada na economia. E quais foram os impostos que mais cresceram? À cabeça (dados DGO), a receita do IVA que, tendo aumentado em cerca de 1.140 milhões de euros (+8%) nestes dois anos de governação, representou um terço do aumento total da receita fiscal entre o final de 2015 e 2017. Em segundo lugar, o imposto sobre produtos petrolíferos, cuja receita aumentou aproximadamente 1.130 milhões de euros (+50%), representando outro terço da variação global. Em terceiro lugar, o imposto sobre o consumo de tabaco: um acréscimo superior a 200 milhões de euros (+16%). Em quarto, o imposto sobre veículos: 180 milhões (+32%). E, em quinto lugar neste ranking de impostos, a receita do imposto de selo que aumentou em aproximadamente 130 milhões de euros (+10%). Em conjunto, estes cinco impostos representaram mais de 75% do aumento global da receita fiscal do governo PS.
Receita fiscal que, tendo passado a remunerar mais o Estado em proporção da riqueza gerada na economia, reduziu em termos relativos a remuneração globalmente atribuída ao trabalho e ao capital. A isto se chama aumentar a carga fiscal.
Nota: Por opção própria, o autor escreve segundo a antiga ortografia
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