O IRS progressivo é antidemocrático
Só 10% do total de agregados entregam ao Estado 70% de receita líquida do IRS. Será isto razoável? Será isto legítimo?
John Stuart Mill, filósofo liberal do século XIX, chamou-lhe “uma forma moderada de roubo” e Rudolph von Gneist, mestre de Max Weber, considerava-o a violação “do mais sagrado princípio de igualdade”, a igualdade perante a lei. No entanto, tendo sido instituído na segunda metade do século XIX, e disseminado durante o século XX, a verdade é que o imposto progressivo sobre o rendimento tem perdurado no tempo, não obstante todas as críticas quanto ao seu impacto negativo sobre a produção e o investimento. Ora, vem isto a propósito de mais uma época de entrega de IRS, que termina hoje. Milhões de portugueses já terão entregado as suas declarações e muitos destes até já terão recebido os seus reembolsos. E aqui reside o primeiro ponto que devemos questionar: por que razão têm de ser os contribuintes a financiar interinamente o Estado, de forma coerciva e sem juros, recursos que lhes são reembolsados, quando o Estado tem os seus próprios meios não coercivos de financiamento? Mas mais importante ainda, que legitimidade tem o Estado para discriminar entre os contribuintes em função dos rendimentos por estes obtidos? É, precisamente, este último ponto cuja discussão hoje vos proponho.
A razão que habitualmente assiste os defensores da progressividade fiscal é a do combate à injustiça social, que alegadamente o mercado tende a induzir. O problema é que a justiça social não constitui conceito económico; traduz, quanto muito, preferências sociais e posições políticas de alguns, que poderão ser (ou não ser) partilhadas pelos demais. O problema é tanto maior na medida em que a soma das racionalidades (ou preferências) individuais não faz uma racionalidade colectiva. É nisto que consiste o célebre teorema da impossibilidade de Kenneth Arrow. Sem surpresa, a progressividade do IRS em Portugal foi-nos imposta, de supetão, pela Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 104º nº1, estipula o seguinte: “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”. A Constituição, no nº3 do mesmo artigo, também se refere ao património, afirmando o seguinte: “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos”. E observa ainda, quanto ao consumo (nº4), o seguinte: “A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo”.
Do artigo 104º da Constituição resulta evidente a difusão (ou confusão!) conceptual sobre justiça social que à época fervilhava no espírito dos nossos parlamentares constituintes, bem como uma formulação pouco clara de como os impostos as deviam endereçar. Isto não serve para dizer que não devem existir políticas de redistribuição de rendimento. Bem pelo contrário – as políticas de redistribuição devem existir, permitindo que a sociedade, por decisão democrática, possa estabelecer um mínimo de bem-estar à população carenciada. Trata-se de uma posição que nem os mais empedernidos liberais, como Hayek ou Friedman, refutavam porquanto níveis extremos de desigualdade seriam desfavoráveis ao desenvolvimento da sociedade. Mas estas políticas de bem-estar não têm de implicar a progressividade do imposto como um fim em si mesmo. Por outras palavras, os impostos devem constituir um meio (e não um fim) de recolha de recursos que permitam a implementação de políticas orçamentais de bem-estar. Políticas essas que são sufragadas eleitoralmente, votadas no Parlamento e implementadas pelo governo. Algo que não sucede com a progressividade do imposto, na medida em que esta está constitucionalmente pré-determinada.
Em Portugal, a progressividade do imposto é substancial. Segundo os dados da Autoridade Tributária, existem 5 milhões de agregados para efeitos fiscais, dos quais apenas metade liquida IRS. Ou seja, apenas 2,5 milhões de agregados contribuem para a receita líquida de IRS. Entre a metade que contribui para a receita de IRS, 80% dos agregados têm rendimentos brutos anuais até 32.500 euros e contribuem com 30% da receita líquida total do imposto. Os restantes 20% de agregados (com rendimentos brutos anuais superiores a 32.500 euros, um intervalo que já compreende uma classe média tratada como se fosse rica) respondem por 70% da receita. Na prática, e esta parece-me a verdadeira dimensão da progressividade do IRS em Portugal, 10% do total de agregados entregam ao Estado 70% de receita líquida do IRS. Será isto razoável? Será isto legítimo? Creio que não. Por um lado, revela que a classe média é, quanto muito, uma classe remediada sobre a qual podem incidir taxas marginais de 28,5 ou 37%. E, por outro, revela um nível de tributação fortemente penalizador do rendimento do trabalho que, para além dos escalões marginais mais altos, é ainda agravado pelas contribuições sociais a cargo quer do empregado quer do empregador.
A ilegitimidade democrática da progressividade do imposto sobre o rendimento radica na minha opinião na sua natureza discriminatória. Quem ganha mais, seja porque trabalha mais horas, porque investiu mais na sua formação, porque é o Ronaldo lá do bairro, ou porque tem um qualquer dom que os consumidores em geral apreciam, é negativamente discriminado. É punido com taxas marginais cada vez maiores. Aqueles que defendem a punição associada à progressividade argumentam que a utilidade marginal do rendimento diminui à medida que este aumenta. Trata-se de um argumento falacioso porque, como Hayek e outros evidenciaram, a utilidade marginal de uma coisa mede-se por comparação à utilidade marginal de uma outra coisa (por exemplo, o trabalho versus o ócio) e não por referência a si mesma. Por esta razão, para corrigir os incentivos relativos entre o trabalho e o ócio, os melhores impostos são aqueles que incidem sobre o consumo. Ao invés, a utilização do imposto directo, e mais ainda de um que é também progressivo, simplesmente consubstancia a discriminação, o esbulho, o assalto ou, nas palavras de Mill, “uma forma moderada de roubo”. De roubar o dinheiro dos outros. De ir buscar dinheiro a quem o está a acumular.
Há muitos anos, em 2008, num jornal chamado “Meia Hora”, assinei um artigo intitulado “Apenas IVA”. Nele propunha a abolição de todos os impostos, com excepção do IVA. À época, os meus cálculos indicavam que teríamos de aumentar os três escalões de IVA de 5, 12 e 21% para 13, 31 e 54% para manter o mesmo nível de receitas fiscais. A proposta teria como vantagens a sua simplicidade, a oneração do consumo que parlamentarmente fosse classificado como frívolo, e incentivos claros à produção, à poupança e ao investimento. Naturalmente, teria também inconvenientes, em particular as distorções económicas que diferentes taxas de IVA, se mal definidas, poderiam causar. Mas numa hierarquia de princípios e de valores, antes as distorções económicas, apesar de tudo tratáveis, do que a discriminação e o roubo, irreconciliáveis com o primado da lei e da democracia. Curiosamente, passaram-se quase dez anos e só muito recentemente vi outro autor defender proposta convergente. Foi Luís Aguiar-Conraria, professor da Universidade do Minho e colunista noutro jornal digital, que num artigo recente, muito bem estruturado, questionava: “E se pagar 50% de IVA fosse uma boa ideia?”.
Em suma, há coisas que sempre me causaram impressão e a progressividade do IRS é uma delas. Promove os incentivos errados, em benefício de fins para os quais o imposto sobre o rendimento não está talhado. Na verdade, o imposto é um meio. Quanto aos fins, as políticas de bem-estar, estas não requerem a progressividade do IRS; requerem sim uma recomposição da política fiscal no sentido de impostos economicamente mais eficientes para o mesmo nível de receita. O IRS deveria assim inexistir ou, como solução intermédia, existir na forma de imposto proporcional – uma mesma taxa, relativamente baixa, para todos os níveis de rendimento do trabalho (um “flat tax”) – e, mesmo neste regime de proporcionalidade, níveis de rendimento abaixo de determinado patamar poderiam ficar isentos da tributação (na prática, mantendo um elemento de progressividade na distribuição inferior de rendimentos, dentro da regra geral de proporcionalidade). É isto aliás que já se pratica na Europa em alguns países cujo PIB per capita se aproxima do nosso, onde uma taxa única e proporcional de IRS está implementada e é bem acolhida. Quanto à ideia de “apenas IVA”, por agora, esta permanece extravagante, mas quem sabe se, esperando outros dez anos, deixa de o ser. Se assim suceder, cá estarei – espero eu! – para retomar o assunto.
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