O Parlamento preguiçoso que proíbe eleitores de votar
Há soluções e houve tempo para decidir. O que faltou então? Faltou um mínimo de interesse dos deputados e faltou a noção de que uma das suas funções primárias é a defesa do direito de voto universal.
Caro eleitor, ainda falta mais de um mês para a realização das eleições autárquicas mas fique já a saber que está proibido de votar se tiver o azar de entrar em confinamento sanitário obrigatório nos sete dias anteriores à votação.
Esse direito democrático básico é-lhe retirado pelo próprio Parlamento, que durante o ano e meio de pandemia não teve vontade ou competência para encontrar uma solução logística que permita a cada cidadão exercer o seu direito e cumprir o seu dever cívico.
Vai funcionar assim. As eleições autárquicas realizam-se no dia 26 de Setembro. O voto antecipado para eleitores confinados tem que ser requerido entre os dias 16 e 19 de Setembro, para que equipas municipais façam a recolha dos boletins na semana seguinte. Quem entrar em confinamento imposto pelas autoridades depois do dia 19 já não poderá votar.
De resto, o mesmo aconteceu nas eleições presidenciais de Janeiro, deixando largas dezenas de milhares de eleitores proibidos de exercer o seu direito. Já nessa altura tinha sido incompreensível que o Parlamento, nos dez meses desde o início da pandemia, não tivesse cuidado de encontrar uma solução para garantir o direito mais sagrado e fundador de um regime democrático, o princípio de uma pessoa, um voto.
Mais se torna agora inaceitável que, nos últimos oito meses, os deputados não tenham percebido a asneira que fizeram então nem se tenham maçado a corrigi-la, mantendo em vigor as regras que decidiram no dia 11 de Novembro como se fossem as adequadas.
A própria Comissão Nacional de Eleições – tantas vezes, ela própria, fonte de problemas mas não neste caso, onde executa as regras decididas pelos legisladores sem margem para interpretações – diz que há aqui falta de vontade política para resolver o assunto. E é claro que havia soluções para que todos pudessem votar se houvesse vontade do Parlamento para as encontrar e executar.
Em Espanha, por exemplo, reservou-se a última hora de abertura das urnas para cidadãos infectados ou em isolamento decidido pelas autoridades. Os membros das mesas de voto estavam devidamente protegidos. Foi em Fevereiro, tivemos tempo para aprender.
Podia ter-se optado por um sistema de voto electrónico reservado aos eleitores em isolamento, mediante inscrição prévia. É um universo restrito e bem identificado pelas autoridades públicas.
Podia fazer-se a recolha de votos na semana seguinte às eleições a todos os que se inscrevessem até à hora de encerramento regular das assembleias de voto, garantindo assim o exercício do seu direito democrático.
Há soluções, houve tempo para as analisar, para decidir e para as executar. O que faltou então? Faltou um mínimo de interesse dos deputados e faltou a noção de que uma das suas funções primárias deve ser a defesa, sem restrições, do direito de voto individual e universal.
Este desprezo pelo direito de voto de dezenas de milhares de cidadãos revela como são de crocodilo as lágrimas que muitos responsáveis políticos vertem perante a subida regular dos níveis de abstenção. É uma preocupação que dura meia hora nas noites eleitorais e que fica sempre bem nos discursos. Mas quando chega um momento que requer decisões e acções concretas que demonstrem que o Parlamento respeita o voto popular e cria condições para que ele possa ser exercido por todos, é isto que estamos a ver.
Este desprezo pelo direito de voto de dezenas de milhares de cidadãos revela como são de crocodilo as lágrimas que muitos responsáveis políticos vertem perante a subida regular dos níveis de abstenção. É uma preocupação que dura meia hora nas noites eleitorais e que fica sempre bem nos discursos.
A avaliar pelos números actuais da pandemia, nestas eleições autárquicas estão em causa mais de 16 mil eleitores infectados (média actual de novos casos por semana) a que se somam todos aqueles que venham a ter contactos de risco a quem as autoridades de saúde imponham o isolamento obrigatório por precaução. Ou seja, mesmo eleitores que não estão contaminados serão impedidos de votar. Com que direito lhes é retirado este direito?
Desde o início, a pandemia desafiou os habituais equilíbrios de um regime democrático entre direitos e deveres. Direitos, como o de circulação, de reunião ou de exercício de algumas actividades económicas, foram cancelados em nome de um dever individual e de um bem público generalizado, que era o controlo da pandemia. Podemos criticar a afinação e eficácia de algumas medidas mas, na generalidade, elas não deixavam alternativa e eram inevitáveis.
Tenho sérias dúvidas que o direito de voto possa ser descartado da mesma forma e com a mesma ligeireza pelo Estado. Primeiro porque é um direito indispensável num regime democrático e depois porque ele está a ser retirado por mera precaução também a pessoas não contaminadas, que, na prática, não representam risco sanitário para a comunidade.
Mas, sobretudo, porque não era inevitável que assim fosse. Havia soluções, há soluções, como vários países já demonstraram — a leitura deste manual da OSCE também pode ajudar os deputados portugueses — que só não foram implementadas em Portugal por manifesta falta de vontade da generalidade dos deputados eleitos e dos partidos com assento parlamentar.
É a preguiça de um Estado que aos cidadãos tudo exige mas que a si não impõe padrões mínimos em assuntos fundamentais, como este.
Mas a preguiça institucional, a manifesta falta de vontade em resolver um problema que tinha soluções para acomodar direitos e deveres, não podem justificar que a obrigação de recolhimento sanitário se imponha ao direito cívico ao voto.
“Para quem é, bacalhau basta”, terá pensado o Parlamento, que já deu o assunto como encerrado em Novembro do ano passado em absoluto desprezo por aqueles que o elegem. Não, não basta. Esforcem-se um pouco mais, por favor, que isto da democracia não é um jogo a feijões nem os eleitores só merecem respeito durante as campanhas eleitorais
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