O problema do SNS não é Centeno, é Temido
A Saúde nunca teve tanto dinheiro e tantos profissionais como agora. A deterioração dos serviços não é um problema de asfixia financeira, mas de qualidade de gestão. #somostodoscenteno.
Quando um médico comunista, um médico socialista e um médico social-democrata olham todos para o mesmo paciente e dizem que está doente, é porque está realmente doente.
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde recorreu a três pessoas do setor, com posicionamentos ideológicos distintos (Cipriano Justo, Leal da Costa e Ana Jorge), para fazer o diagnóstico da Saúde em Portugal. A conclusão do relatório foi assim resumida pela Lusa: “O setor da saúde foi marcado nos últimos anos por uma inércia de governação, muito baseada em gestão corrente (…) e deixando reformas por concretizar”. E vai ainda mais longe ao dizer que em termos governativos, “pouco foi acrescentado à herança do Governo anterior”.
Esta semana, aqui no ECO, Manuela Arcanjo, ex-ministra da Saúde de António Guterres, fazia um diagnóstico semelhante: “há falta de material, não há instalações e há degradação dos serviços públicos na área da saúde”.
É um atestado de incompetência a Adalberto Campos Fernandes e a Marta Temido. Até agora, a retórica dominante tinha sido olhar para o Terreiro do Paço sempre que havia uma maternidade que encerrava, uma cirurgia adiada, listas de espera intermináveis, doentes acamados nos corredores dos hospitais, ou crianças de um hospital oncológico internadas num contentor. O que este relatório vem mostrar é que o problema da Saúde não é de dinheiro, é de gestão e de más opções políticas. O problema não está no Terreiro do Paço, mas na Avenida João Crisóstomo.
Aliás, ainda todos se lembram que a lengalenga do “Somos todos Centeno” começou com um crítica direta do ministro das Finanças ao seu então colega Adalberto Campos Fernandes: “os recursos que estão a ser dedicados ao SNS são muito superiores aos que eram em 2015 e pode seguramente haver má gestão. Haverá e temos de olhar para ela”.
Até agora, Adalberto e Marta Temido, o ex e a atual ministra da Saúde, fizeram pouco ou quase nada para resolver os problemas na Saúde. Nem sequer honraram a herança de Paulo Macedo que mesmo com a troika conseguiu gerir com competência e disciplina financeira o SNS.
Afinal, o que tem feito e não tem feito Marta Temido? Anda há um ano entretida a negociar uma Lei de Bases na Saúde, um documento fútil, inútil, que não cura uma única constipação, e que pretende apenas cristalizar num nível intermédio o que já está na Constituição e as leis que já existem numa visão afincadamente ideológica. A propósito deste tema, o Observatório Português dos Sistemas de Saúde considera que se perderam meses “a mais em tergiversações, retórica e taticismo”. Ainda a propósito deste assunto, não deixa de ser curioso ler a entrevista desta quinta-feira de Marta Temido ao Público onde diz, a propósito da inclusão ou não das PPP na Lei de Bases, que “um dogmatismo não deve estar na lei”. Então, mas não foi a própria Marta Temido que enviou para o Bloco de Esquerda um esboço de uma proposta de Lei de Bases onde erradicava as PPP? O que vale é que na política as convicções têm um prazo de validade bastante mais curto do que o de um medicamento.
Dinheiro é coisa que não tem faltado no SNS. Aliás, na mesma entrevista, os jornalistas perguntam a Temido se ‘o ministro das Finanças podia ajudá-la a dormir melhor?’ Ao que ela responde: “E costuma ajudar.” Mário Centeno tem realmente ajudado a ministra a dormir; não com canções de embalar ou ansiolíticos, mas com o maior Orçamento do SNS de sempre (mais de dez mil milhões de euros), com a autorização para a contratação de 10.800 profissionais de saúde face ao início da legislatura, e ainda tentando ‘zerar’ o problema crónico das dívidas em atraso dos hospitais aos fornecedores.
Não havendo problema de financiamento na Saúde (numa lógica de que o país tem recursos limitados), o que falta é qualidade de gestão. Faltam competências à tutela e aos administradores dos hospitais na definição de escalas (sobretudo nos meses de verão), para evitar soluções de recurso caricatas como a do fecho rotativo de maternidades na região de Lisboa. Falta investir em infraestruturas, equipamentos, e melhoria das condições de trabalho de profissionais que, desmotivados, têm colocado a taxa de absentismo na Saúde em níveis estratosféricos. Falta humildade ideológica para perceber que as PPP são complementares e fazem parte da solução quando os resultados comprovam que são mais eficientes e baratas do que a gestão pública.
Aliás, na entrevista ao Público, Marta Temido reconhece que os problemas da Saúde e a falta de investimento não são culpa das cativações de Mário Centeno (que deixaram de existir no setor), mas sim da “falta de capacidade que nós às vezes temos de executar as verbas que nos são afetas. Não basta dizer ‘há verba para investimento’, é preciso ter depois projetos, ter os projetos bem feitos, e ter os projetos com concursos realizados.”
Então, quem é que é suposto fazer estes projetos e estes concursos? É a ministra da Cultura? É o ministro das Finanças? Da Agricultura? Não será porventura o Ministério da Saúde?
Claro que para investir, comprar equipamentos, recompensar o mérito e para pagar a exclusividade dos médicos que repartem o seu tempo entre o público e o privado é preciso dinheiro. E o maior Orçamento de sempre da Saúde não tem chegado para tudo, porque o dinheiro que Mário Centeno tem injetado tem sido usado sobretudo para contratar profissionais para tapar o gigantesco buraco que ficou na Saúde com a opção pelas 35 horas de trabalho semanal. Num contexto de aumento da procura pelos serviços hospitalares, a combinação é explosiva.
Se numa repartição pública que está aberta 8 horas por dia, as 7 horas de trabalho passaram a ser um problema grave, imagine-se o prejuízo que não provoca na Saúde que trabalha 24 horas por dia.
Os tais 10.800 profissionais de saúde contratados por este Governo representam, grosso modo, um aumento de 12,5% face ao contingente no início da legislatura. Ora, 12,5% é precisamente o valor da redução das 40 para as 35 horas. É só fazer as contas.
Aqui a culpa não é de Marta Temido. É de António Costa que desbaratou milhões de euros de recursos públicos para tirar uma hora de trabalho diário à Função Pública criando, além do mais, uma injustiça tremenda face ao setor privado. Na entrevista ao Público, a ministra admite que ainda anda à procura de enfermeiros e assistentes operacionais para o SNS por causa das 35 horas que o Governo disse, há quatro anos, que não ia ter grande impacto na qualidade dos serviços púbicos.
Também não é culpa de Marta Temido (ou, pelo menos, não só de Marta Temido) que a empresa que foi escolhida para fazer a obra de ampliação do Hospital de Viseu tenha esperado dois anos pela autorização de despesa do Governo até que resolveu desistir da empreitada. O mercado está em alta e os preços de há dois anos já não se praticam hoje. Agora, o Governo terá de lançar novo concurso e pagar substancialmente mais pelas obras de um hospital que serve meio milhão de pessoas de vários concelhos da Beira Alta e cuja urgência chega a atender 400 doentes por dia, quando foi projetada para menos de metade.
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde conclui no seu relatório que os “três anos do anterior ministro Adalberto Campos Fernandes representaram apenas um ‘arrastar de pés’”. E à equipa que o substituiu em outubro de 2018, restou “resolver os conflitos laborais e gerir politicamente a revisão da Lei de Bases da Saúde”. É pouco e é possível fazer mais e melhor. Não somos todos Centeno. Não somos todos Adalberto. Não somos todos Temido. E não somos todos incompetentes.
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