Onde mora o bom senso?

Perante tanto disparate nas leis de habitação, pergunto onde mora o bom senso. Infelizmente, receio que o tenham despejado e seja agora sem-abrigo na Rua da Amargura.

Na Quinta-feira da semana passada, fui pela primeira vez ao novo campus da Nova, para assistir a mais uma edição do ciclo de conferências Economia Viva. O tema era “Imobiliário em Portugal: escassez ou especulação?”, mas as várias intervenções acabaram por ser sobretudo sobre o papel das políticas públicas em matéria de habitação. A este propósito, foi afirmado que há uma grande pressão para que se legisle neste domínio. Tem-se notado. E notou-se uma vez mais nessa Quinta-feira. Enquanto eu estava no Hovione Atrium a ouvir a debate, os ministros estavam reunidos em Conselho, a aprovar mais um pacote de cinco medidas destinadas ao arrendamento.

A que gerou mais alarido foi a do Direito Real de Habitação Duradoura (DHD). As notícias falaram em contrato vitalício e o pânico instalou-se. Precipitadamente. Desde logo, porque, conforme refere o comunicado do Conselho de Ministros, este diploma foi aprovado na generalidade para discussão pública. Ou seja, não vai ser já enviado para promulgação. Depois – e este ponto é mais importante –, porque se trata de um novo tipo de contrato, que é facultativo. Não se deu aos actuais arrendatários o direito a permanecer vitaliciamente nas casas que arrendaram, não é isso.

Ora, sendo um regime facultativo, depende do acordo das partes. Eu não sei quem quereria assinar tal coisa. É certo que os pormenores do funcionamento deste instrumento ainda não são conhecidos, mas aquilo que já se sabe basta-me para duvidar da sua eficácia, mesmo que a APEMIP o tenha considerado aliciante para os fundos que investem no mercado imobiliário.

Com este regime, os inquilinos ganham o direito a residir na casa até ao fim dos seus dias; entregam ao senhorio uma caução e pagam uma prestação por cada mês de duração do contrato. É bastante parecido com fazer um empréstimo – e até podem fazer um para pagar a dita caução, hipotecando o DHD, num esquema que me ultrapassa totalmente –, só que a casa não lhes pertence (o que é bom para quem quiser evitar disputas familiares à conta da herança).

É engraçado porque, num tempo em que o mundo se faz cada vez mais de mudanças, com empregos e casamentos que já não são para a vida, o Governo está preocupado com haver casas para todo o sempre. Bom, é certo que o inquilino pode rescindir o contrato a qualquer altura e que isso nem implica a perda da caução. Mas, então, qual a vantagem para os senhorios?! Neste momento, o Código Civil permite que se façam contratos de arrendamento a 30 anos; que vantagem oferece o DHD?! Segundo o Governo, ela está no “aumento do capital disponível sem que isso implique vender o seu património”. Chamar-lhe “disponível” é capaz de ser optimista, porque se a caução fica sujeita a ter de ser devolvida, talvez não haja grande sentimento de se poder dispor dela.

Portanto, o Direito Real de Habitação Permanente não é compra nem arrendamento, não aquece nem arrefece. É bastante inútil. E se é verdade que já não se gasta papel com o Diário da República (porque ele passou a ser digital), não deixa de ser negativo ter legislação que não serve para nada. No caso em concreto, pelo assunto que visa, traz um sentimento de falta de confiança e isso é que certamente não ajuda nada a que haja mais oferta no mercado imobiliário.

Embora tenha provocado menos agitação, o agravamento da tributação de imóveis devolutos é bem menos inofensivo.

Comecemos pela questão de princípio. O que está subjacente a esta medida é a noção de que os proprietários têm um dever de manter as suas casas ocupadas. Eu sei que essa é uma noção patente nas propostas de PS, de PCP e de BE para a Lei de Bases da Habitação. Mas esses três Projectos de Lei estão ainda em apreciação na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação e, por isso, parece-me de mau tom estar a legislar dentro de um enquadramento que ainda não foi aprovado.

E a minha opinião sobre o assunto é a de que não cumpre aos proprietários privados garantir o direito à habitação. Portanto, não vejo com bons olhos que se penalize fiscalmente quem decide ter a casa vazia. Dir-me-ão que há outros países europeus onde é assim que funciona. Pois bem, eu sou muito favorável a comparações internacionais, mas, em primeiro lugar, há que perceber que nem tudo o que se faz lá fora está bem feito e, depois, convém ter em mente que uma política que funciona num determinado contexto pode não ser apropriada noutro.

Portugal é um país de proprietários. Tivemos durante anos uma política de habitação que praticamente se resumia a bonificar o crédito para compra de habitação própria. Mas isso é uma consequência de sermos um país de proprietários, não é a causa; isso foi uma política pensada para responder à ambição dos portugueses. A expressão maior de pobreza é “não ter onde cair morto”, ou seja, não ter um sítio que seja seu. E, assim, as primeiras poupanças dos nossos emigrantes da década de 60 serviram para construir uma casa. Casas a que damos nomes e onde colocamos azulejos com orações protectoras, porque é essa a relação que temos com elas. Não perceber isto é não perceber algo fundamental na concepção de uma política de habitação.

Do ponto de vista prático, também são algumas as objecções, embora mais uma vez me faltem os detalhes da implementação para poder avaliar melhor. Mas posso já constatar que temos em Portugal mais habitações que agregados familiares (ainda que eu conceda que alguns agregados não se desfazem precisamente pela falta de casa) e que a população está a diminuir, pelo que casas vazias haverá sempre.

Fico curiosa sobre o nível de consumos que será usado para determinar que a casa não é habitada; Porque, ou é suficientemente alto para corresponder, de facto, a estar habitada numa base diária (e pode, assim, penalizar uma míriade de situações em que a casa não está devoluta) ou é baixinho e resolve-se com um pequeno crime ambiental (por isso, até faz sentido que o pelouro da habitação tenha mudado de Ministério). E fico apreensiva com atribuir aos municípios o poder de decidir quais os critérios definidores das tais zonas de pressão urbanística onde a taxa de IMI pode sextuplicar.

Perante tanto disparate, pergunto onde mora o bom senso. Infelizmente, receio que o tenham despejado e seja agora sem-abrigo na Rua da Amargura.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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