Os liberais e os outros
Os pensadores liberais de referência são académicos e estudiosos, Trotsky, que Louçã tem como referência, liderou um exército, tendo passado uma parte da sua vida a matar e a fomentar a destruição.
Há semanas, Francisco Louçã escreveu um ensaio sobre a “Traição dos liberais” na revista E do Expresso que foi tudo aquilo que se esperava que Louçã escrevesse sobre o liberalismo. Respondi a esse ensaio, nomeadamente no que aos autores do século XX dizia respeito, na mesma revista duas semanas depois. Louçã voltaria a responder com os mesmos argumentos do artigo original, apenas num tom mais zangado e direcionado, na semana seguinte. Introduziu algumas falácias e distorções novas, mas sei que é escusado contrariá-las [1] porque tal seria um trabalho a tempo inteiro, impróprio para o período de Verão. Fica apenas o desafio: em breve o Instituto +Liberdade irá lançar uma pós-graduação em pensamento liberal onde serão ensinadas as várias correntes do pensamento liberal e as suas ligações à actualidade. Se Louçã estiver interessado em ficar esclarecido sobre o que realmente defendem as diferentes correntes poderá candidatar-se (não posso garantir que seja aceite porque as vagas serão limitadas, tendo a vontade e capacidade de aprender como um critério importante de seleção).
A questão verdadeiramente relevante aqui é que Louçã constrói estas narrativas sobre o pensamento de alguns autores liberais com o objetivo de criar desconfiança em relação ao liberalismo num pressuposto errado: o de que o liberalismo se rege pelos mesmos moldes que a sua área ideológica. O pressuposto errado de Louçã é o de que o liberalismo é uma ideologia fundada no culto de personalidade(s). Compreende-se que pense assim já que Louçã vem de um campo ideológico onde as facções são fundadas em cultos de personalidade (marxistas, leninistas, stalinistas, maoistas, ou, como é o caso de Louçã, trotskystas). Partindo desse pressuposto, que se aplica apenas à sua área ideológica, Louçã julga que ao atingir a reputação de alguns pensadores com manipulações e distorções consegue atingir a credibilidade de todo um campo ideológico.
Mas o liberalismo é muito mais do que aquilo que cada um dos seus pensadores individuais escreveu ou fez ao longo da vida, está acima disso. A ideia de que uma só pessoa consegue conter toda a verdade sobre uma ideologia, e que essa ideologia depende daquilo que essa pessoa representa, é próprio da sua área ideológica, mas não do liberalismo. Aquilo que Louçã não percebe é que mesmo que a narrativa que tenta passar sobre esses pensadores fosse verdade, isso não teria as consequências que ele julga que tem.
O pensamento liberal não se baseia no culto de personalidade, ao contrário de outras ideologias à esquerda e à direita. Não há um seguidismo religioso a um líder de pensamento porque nenhuma pessoa sozinha consegue concentrar em si o conhecimento suficiente para estar certo sobre todas as coisas e tomar as decisões certas sobre todos os assuntos, o que não implica que não possam ter contributos parciais que possam ser bastante apreciados. Há vários pensadores liberais que disseram ou fizeram coisas com as quais a maioria dos liberais modernos não concorda e isso não implica que os seus contributos positivos não possam ser valorizados e não tenham aplicação prática na atualidade.
O liberalismo beneficiou de vários contributos ao longo dos últimos 400 anos, dos escolásticos de Salamanca, a Locke, Hume, Mill, Constant, Hobbes, passando por Smith, entre dezenas de outros, até aos autores do século XX mencionados no texto. Cada um trouxe contribuições em diferentes áreas que se complementam. Até pensadores que eu não classificaria como liberais trouxeram contributos importantes para o pensamento liberal. Apreciar e valorizar esses contributos não implica estar de acordo com tudo o que esses autores disseram sobre todos os assuntos ao longo de toda a sua vida.
Os pensadores liberais de referência são académicos e estudiosos que permitiram que o pensamento evoluísse pela destruição de argumentos e não pela destruição física dos seus adversários. Pelo contrário, Stalin, Lenine, Mao ou Trotsky, que dão nome a algumas das principais correntes socialistas, são também homens de armas.
Se hoje descobríssemos que Adam Smith tinha cometido um qualquer crime horrível, isso não retiraria nada aos contributos positivos que deu para o pensamento liberal. David Hume era racista mesmo para os padrões do seu tempo (reconhecidamente, não um racista daqueles que Louçã inventa no seu texto) e os seus contributos continuam a ser valorizados, mesmo que essa componente da sua vida contrarie os princípios liberais mais básicos. Entre liberais não há cultos de personalidade, não há Lockistas, Smithistas ou Hayekistas. Há liberais com diferentes sensibilidades que valorizam mais os contributos intelectuais de uns pensadores do que de outros. Mas nenhum liberal assenta o seu pensamento naquilo que um só autor representa, disse ou fez. Nenhum recusará os contributos positivos que Locke, Mill, Smith ou Hayek deram, mesmo que discordem ou desvalorizem outras áreas do seu pensamento.
Esta capacidade de diálogo e convergência resulta de uma ideologia madura construída pela força do confronto pacífico de ideias. Esta é outra diferença importante. Os pensadores liberais de referência são académicos e estudiosos que permitiram que o pensamento evoluísse pela destruição de argumentos e não pela destruição física dos seus adversários. Pelo contrário, Stalin, Lenine, Mao ou Trotsky, que dão nome a algumas das principais correntes socialistas, são também homens de armas. O socialismo foi forjado no século XX pela força das armas e do sangue derramado, e as suas disputas internas resolvidas da mesma forma. Trotsky, que Louçã tem como referência, liderou um exército, tendo passado uma parte da sua vida a matar, violentar e a fomentar a destruição para que um dos maiores grupos de carniceiros da história da humanidade tomasse o poder. Eventualmente, também ele acabou por ser vítima dos carniceiros que antes tinha ajudado a colocar no poder.
As lutas entre diferentes facções socialistas no século XX não foram resolvidas pelos argumentos, mas pelo sangue. Já quando as coisas azedaram nas discussões entre os grandes pensadores liberais, o mais grave que se assitiu foi a utilização do insulto, nomeadamente o pior deles todos neste contexto: chamar socialista ao seu adversário.
Finalmente, de volta ao presente, há mais uma diferença importante. Por muito que se manipulem posições de autores liberais, que se forcem culpas por associação, ninguém acredita que os liberais portugueses constituam uma ameaça ao regime democrático, que queiram de alguma forma tomar o poder pelo uso da força ou defender algum tipo de totalitarismo. Nem o maior maluquinho das redes sociais que se dedica a estabelecer paralelos entre liberais a fascistas acredita verdadeiramente nisso.
O mesmo já não se pode dizer com a mesma certeza da área política de Francisco Louçã que fazia apelos à revolução quando o país já tinha 20 anos de democracia (lembram-se da propaganda do PSR nos anos 90?) e que incorporou no seu partido pessoas que lançavam bombas contra a democracia e assassinavam adversários políticos já Portugal tinha eleições livres há 10 anos. Esta é uma diferença importante, relevante para as escolhas atuais e não há manipulação de pensamento ou culpas por associação que sejam capazes de apagar isso.
Há uma diferença, no entanto, que Louçã fez questão de deixar clara no seu texto. Não entre ideologias, mas entre pessoas. Louçã trata-me no seu artigo como “polemista”, provavelmente para não sujar o termo “economista” com que o próprio é habitualmente tratado. Uma possível justificação para este tratamento é Louçã estar a soldo da Ordem dos Economistas que também considera que eu não posso ser tratado como tal, apesar de ser licenciado, doutorado e ter trabalhado como tal durante os últimos 15 anos.
Outra explicação, mais provável, é com esse tratamento ter tido a intenção de diminuir o seu adversário de discussão (tentativa falhada porque eu até acho piada ao termo “polemista”). Aqui também há uma diferença, não entre ideologias, mas entre formas de estar. Eu não devolvo o tratamento que Louçã me deu até porque há uma parte da vida dele pela qual sinto respeito e afinidade: tal como eu, quando ele tinha a minha idade, dedicou tempo da sua vida a lutar pelas ideias em que acreditava, tentando que elas obtivessem representação parlamentar. Tal como eu, Louçã conseguiu atingir esse objetivo. É verdade que ele demorou 15 anos a atingi-lo e eu apenas 1, mas isso é derivado de algo que nós, os economistas, chamamos de eficiência. Outra diferença.
[1] Abro apenas uma exceção em nota de rodapé para rebater o argumento de que Barry Goldwater era racista. A ideia de que Barry Goldwater era racista é absurda para quem conheça minimamente a sua história de vida. Goldwater defendeu a integração nas escolas no Sul, introduziu leis para eliminar a segregação nos sindicatos, votou a favor da lei dos direitos civis de 1957 que eliminou boa parte das discriminações existentes, votou a favor da 24ª emenda que eliminou restrições ao direito de votos de minorias. Ele foi toda a sua vida membro da NAACP (uma associação de proteção dos direitos das minorias), tendo aberto umas das filiais na sua terra natal, aplicou a integração nas suas unidades militares muito antes de ser obrigatório fazê-lo e logo no seu primeiro ano como senador exigiu que a segregação acabasse no bar do senado para que a sua assistente, negra, pudesse ser servida juntamente com todos os outros funcionários. Toda a narrativa da sua objecção à integração resulta de ter votado contra o Civil Rights Act de 1964 por considerar que um dos capítulos era inconstitucional. Ele haveria de se arrepender dessa decisão (em comissão tinha votado a favor). Barry Goldwater teve algumas posições condenáveis, muitas iliberais, mas dizer que era racista é um absurdo. Ainda mais absurdo achar que quem lhe dava aconselhamento económico alinharia nisso. Basta uma curta leitura das obras de Friedman para o perceber.
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