Os verdadeiros responsáveis da desigualdade social
Quando os banqueiros centrais se lastimam que o índice de preços não sobe o suficiente, nomeadamente ao mítico ritmo de 2% ao ano, devem-no fazer com imensa hipocrisia ou então ignorância.
No princípio do presente ano, o conhecido investidor Warren Buffett afirmava: “Os mais ricos são definitivamente subtributados face à generalidade da população”. Em 2011, afirmou com sarcasmo: “Parem de mimar os ricos”. Mais recentemente, o também afamado investidor George Soros assinou uma carta, conjuntamente com outros bilionários (é destes multimilionários que se trata), que clamava pela aplicação de impostos sobre o património. A proposta que constava desta carta passava por um imposto de 2% sobre a riqueza superior a 50 milhões de dólares e um adicional de 1% para a riqueza superior a 1000 milhões de dólares. A senadora Elizabeth Warren, candidata democrata às próximas eleições nos Estados Unidos em 2020, tem apresentado propostas semelhantes a esta.
Efectivamente, desde 1980 que a proporção da riqueza detida pelas famílias norte-americanas que fazem parte do grupo das 5% mais ricas não pára de subir; de 14% para quase 20% aproximadamente, uma subida de 6%, algo verdadeiramente substancial num espaço reduzido de tempo. Esta evolução pode ser observada na Figura 1.
Assim, dever-se-á colocar a seguinte questão: será que uma crescente tributação, em particular progressiva, contribuiu para o atenuar das desigualdades sociais? Se utilizarmos dados da distribuição de rendimento e tributação nos Estados Unidos, tal como consta na Figura 2, chegamos a conclusões surpreendentes.
As famílias que se encontram no grupo restrito das 5% mais ricas nos Estados Unidos pagam 60% dos impostos, representando 35% do rendimento bruto anual — declarações para efeitos do imposto federal sobre o rendimento anual bruto. Ou seja, o sistema é brutalmente progressivo e, no entanto, não é capaz de eliminar a crescente desigualdade. Se realizarmos análises semelhantes para outras economias desenvolvidas iremos, certamente, chegar à mesma conclusão.
Por exemplo, em Portugal o peso da carga fiscal no PIB não cessa de subir, tal como podemos observar na Figura 3, ou seja, a importância do Estado na nossa carteira é crescente, implicando, um cada vez, menor poder de decisão sobre o que produzimos e poupamos. Em 2018, a carga fiscal em Portugal atingiu um máximo histórico de 35,4%.
Face a estas evidências, fica claro que o crescente intervencionismo estatal não parece ser a solução; pelo contrário, a desigualdade social é crescente e a carga fiscal asfixia o investimento e a poupança dos cidadãos. Em nome da igualdade social, assistimos a todo este brado com um olho cínico, porque, ainda por cima, vem do grupo mais privilegiado da sociedade; importa por isso colocar a questão: Isto faz algum sentido?
Todos estes apelos lancinantes por mais impostos, fazem-me me lembrar o efeito de lente do livro ‘’a arte de guerra’’ de Sun Tzu, atendendo que constitui uma manobra de diversão, visando desviar as atenções do verdadeiro problema: a inflação.
Acontece que a partir de 1971, com o fim do padrão-ouro, os bancos centrais passaram a poder emitir moeda sem quaisquer restrições. Com as crescentes pressões da classe política para mais estímulos e ajudas, com o objectivo de vencer eleições a qualquer custo, a pressão para a expansão da massa monetária, desde então, tornou-se imparável.
Como podemos observar, através do gráfico da Figura 4, sempre que a inflação foi combatida através de políticas monetárias restritivas, como quando a taxa de juro directora do Banco Central norte-americano (Fed) chegou a 22%, a desigualdade social diminuiu. Desde então, vamos de crise em crise, em que o pico da taxa de juro em cada ciclo económico é decrescente. Desde 2009, em resposta à crise, a FED manteve os juros a 0% durante vários anos, apenas conseguindo-os subir a 2,5%; em paralelo, introduziu programas massivos de compra de activos, denominados “Quantitative Easing”, um nome magnificente, mas que traduzido por linguagem simples, significa simplesmente imprimir dinheiro.
Em que medida esta política monetária cria enormes desigualdades? Importa ter em conta que quando existe a emissão de dinheiro de forma ilegítima, como é o caso do sistema actual, em que um simples funcionário carrega num botão e cria dinheiro do nada, a redistribuição de riqueza tem lugar, mas no sentido da…concentração.
Porquê? Imagine o leitor que possui uma impressora de dinheiro e dirige-se a um centro comercial: o seu poder aquisitivo sobre qualquer bem ou serviço é muito superior aos demais. Ou seja, consegue, caso o deseje, apropriar-se de uma fatia muito superior da produção realizada pelos demais face à sua situação anterior, em que não possuía a dita impressora. Por outro lado, os bens mais desejados por si são aqueles que sofrem a maior subida, pois pode licitar preços mais elevados que os demais. Em conclusão, os primeiros a receber as “novas notas” são os mais beneficiados; a inflação aparece nos bens, serviços ou activos em que a nova massa monetária é utilizada na sua aquisição. Em sentido figurado, se o leitor construir uma pirâmide de copos de champanhe e começar a verter o líquido para os copos do topo, não só, são os primeiros a encher, como estarão em permanência a receber o precioso líquido, enquanto os outros mais abaixo o receberão mais tarde e alguns, eventualmente, só receberão gotas.
Em quê que é diferente do que tem acontecido, em particular desde a última crise iniciada em Setembro de 2008 pela falência do Lehman Brothers? Os principais bancos centrais imprimiram quantidades impressionantes de moeda para comprarem activos financeiros, tais como obrigações, tanto soberanas como de empresas, e acções. Quem foram os primeiros beneficiados destas compras? E se não é proprietário de activos financeiros, como pode ser beneficiado com estas medidas? A título de exemplo, o Banco do Japão detém 74% dos ETFs cotados na bolsa de Tóquio. Ou seja, a expansão do balanço dos bancos centrais tem servido para inflacionar os mercados bolsistas e de obrigações.
Como podemos observar na Figura 5, a expansão do balanço do banco central norte-americano, de 800 mil milhões de USD para 4,5 biliões (milhões de milhões) de USD, permitiu uma subida de 300% do principal índice norte-americano, o S&P 500, desde mínimos registados em Março de 2009. Para termos uma ideia da dimensão desta loucura, esta expansão do balanço significou 17 vezes o PIB português aproximadamente. Assim, no momento em que o banco central iniciou a redução do seu balanço, isto é, a contracção da massa monetária, imediatamente provocou uma queda do mercado no final de 2018.
Não admira o imediato coro de vozes que se seguiu apelando para a descida das taxas de juro, por parte dos bilionários: afinal de contas aqueles que movimentam a economia. A pressão de imediato surtiu efeito: as taxas de juro começaram a descer e implementou-se um novo tipo de “Quantitative Easing”, em Setembro do presente ano; desta vez sob a forma de “Repo” (estão sempre a inventar nomes para a mesma candonga), em que de repente se imprimiu 400 mil milhões de USD, iniciando-se novamente a expansão do balanço, tal como podemos observar na Figura 5. Com estas notícias, o S&P 500 voltou a cotar em máximos históricos, tendo encerrado pela primeira vez acima dos 3100 pontos (3120 pontos; 15-11-2019).
Esta inflação não se reflectiu apenas no mercado norte-americano, as obrigações soberanas dos estados europeus, em particular aqueles em maiores dificuldades, como Portugal, apresentaram subidas excepcionais, isto depois da grandiloquente afirmação de Mario Draghi: “O que for preciso!”. Como podemos ver na Figura 6, a impressão de moeda para resgatar Estados falidos gerou uma inflação no mercado de obrigações sem precedentes. Se um investidor investisse 100 Euros numa obrigação do estado português, com uma maturidade de 10 anos, em inícios de 2009, hoje tinha 265 euros. No caso da Grécia, um investimento em Junho de 2012, um mínimo histórico (18), teria gerado uma rendibilidade de mais de 1200% (220).
Quem lucrou com toda esta inflação? Seguramente, não terão sido os pobres e desfavorecidos; julgo que a resposta é fácil de encontrar: as classes mais altas e detentoras de activos financeiros, os altos quadros das principais instituições do sistema monetário mundial (FMI, Banco Mundial, BCE, FED…), os banqueiros centrais e os empresários com ligações ao poder.
O mais perverso de tudo isto, e também uma das principais razões para a subida imparável do mercado norte-americano, foi a utilização que as empresas norte-americanas fizeram das reduzidas taxas de juro – artificiais e manipuladas, pois nunca existiriam num mercado livre. Ao longo destes anos, financiaram-se a taxa 0% para comprar as suas próprias acções, colocando pressão compradora no mercado, no fundo um verdadeiro festim para accionistas e gestores. Estes últimos, com estas decisões de compra das próprias acções, viram os seus bónus dispararem, atendendo que executaram opções a preços de expiração ridículos. A ênfase dada ao crédito e aos benefícios às castas mais endividadas reflectiu-se na descida das taxas de juro. Na economia real este crédito não serviu para financiar novos equipamentos ou novas fábricas, apenas para encher os bolsos dos accionistas e gestores das grandes empresas.
Quando os banqueiros centrais se lastimam que o índice de preços não sobe o suficiente, nomeadamente ao mítico ritmo de 2% ao ano — sabe Deus quem o inventou — devem-no fazer com imensa hipocrisia ou então ignorância, qual das duas a pior. Bastar-lhes-ia analisarem a evolução do mercado de capitais, do mercado imobiliário, dos preços pagos por carros de luxo, a enorme borbulha no mercado das criptomoedas, a subida exponencial do preço dos passes dos jogadores de futebol…não necessitariam de muito tempo para se darem conta da enorme inflação existente no sistema. Claro está, o índice oficial do governo nunca reflecte tais coisas. Anda sempre perto de 0% e nunca chega aos 2%; por isso, eles necessitam que a rotativa de imprimir dinheiro continue a funcionar a todo o gás.
Existe uma outra forma de ver o problema, por vezes utilizada por políticos e economistas associados ao poder: que não existe inflação, em resultado do excesso de capacidade instalada em relação ao poder de compra disponível; por isso, a necessidade de estimular o consumo, através do gasto público e impressão de moeda. Como se alguma vez fosse difícil consumir! O que custa é produzir e poupar; um agricultor tem que semear e esperar pela colheita para vender a sua produção; com esse dinheiro, pode utilizá-lo no consumo, mas primeiro teve que produzir. Desta forma, torna-se absurdo este apelo ao consumo, como se isso fosse patriótico, difícil ou algo excepcional. Complicado é produzir e entregar.
O facto é que a política monetária seguida pelos principais bancos centrais do mundo é a principal responsável pela crescente desigualdade social que estamos a viver. Voltando aos apelos das grandes fortunas do mundo, como George Soros e Warren Buffett, referidos no início deste artigo, que se sentem profundamente incomodados com o excesso de riqueza que possuem, sugiro uma solução muito simples: no final do ano, na sua declaração de IRS, preencham o apartado de donativos ao governo com muitos zeros. Desta forma singela, podem resolver o seu desassossego e dormir mais descansados, deixando de zombar de todos nós.
Acredito que devem ter a consciência pesada, face ao enorme saque que os bancos centrais estão a realizar aos pequenos aforradores e aos que não possuem activos reais (casas, ouro, prata…) a seu favor. Conhecedores que são deste processo de transferência de riqueza não será fácil sentirem-se aliviados. Não admira que peçam: confisquem-me por favor, quero mais impostos…
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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