Pela defesa da liberdade de expressão no ambiente online
Encontramo-nos, pois, num dos últimos momentos em que nos podemos questionar se estamos confortáveis em avançar por uma via que muitos consideram ser incompatível com a liberdade de expressão.
Foi conhecida no passado dia 28 de novembro a proposta de transposição da Diretiva (UE) 2019/790 para o ordenamento jurídico português.
A Diretiva entrou no espaço mediático em 2016, por causa do seu artigo 13. Talvez uma das normas mais controversas da história legislativa europeia, motivou manifestações em várias cidades e não faltaram vozes a anunciar o fim da Internet tal como a conhecíamos. Isto porque a Diretiva estabelecia que determinadas plataformas – como o Youtube ou o Facebook – teriam a obrigação de “filtrar” os carregamentos dos utilizadores e bloquear o acesso a conteúdos que fossem protegidos por direitos de autor.
Ora, os referidos filtros (que funcionam de forma semelhante a uma aplicação do tipo Shazam), são extraordinariamente bons na deteção de conteúdos protegidos por direitos de autor, mas praticamente incapazes de identificar o contexto da utilização – e, no mundo dos direitos de autor, o contexto é tudo: se não há dúvidas que a disponibilização no Youtube do novo Avatar de James Cameron na integralidade constitui um ato ilícito, não é menos certo que a lei permite o uso do filme para efeitos de paródia, crítica, ou mesmo em contexto académico.
Sendo os filtros incapazes de identificar o contexto em que a obra é utilizada, é inevitável que a sua utilização não supervisionada por humanos conduza à remoção de carregamentos que representavam manifestações lícitas da liberdade de expressão.
O legislador europeu foi sensível a estas preocupações e na versão final da Diretiva, já de 2019, encontramos uma formulação tecnologicamente neutra (não se encontram referências expressa ao uso de filtros de carregamento) e é anunciado que as plataformas devem empregar esforços para garantir a disponibilidade de conteúdos lícitos.
Certos grupos de interesses especialmente ligados aos titulares de direitos de autor viram nesta tentativa de circulatura do quadrado uma concessão desnecessária à liberdade de expressão. Outros, mais próximos dos direitos dos utilizadores das plataformas, viram ingenuidade por parte do legislador europeu: na aparente neutralidade do texto final escondem-se incentivos claros a que as plataformas adotem uma política de remoção de conteúdos muito mais conservadora do que aquela que seria estritamente necessária.
Terá sido este receio que motivou a ação de declaração de nulidade apresentada pela República da Polónia junto do TJUE logo em 2019, uma ação que só conheceu o seu desfecho em abril deste ano. E se é certo que o Tribunal de Justiça segurou a Diretiva, não é menos verdade que deixou vários alertas aos legisladores e aplicadores nacionais: uma transposição da Diretiva respeitadora da liberdade de expressão não pode permitir o uso indiscriminado de filtros de carregamento.
O legislador português apresentou uma primeira proposta de transposição literal da Diretiva em ainda em 2021, dias antes da queda do Governo motivada pelo chumbo do orçamento de estado. A mudança de executivos era a desculpa perfeita para reabrir o debate público e apresentar um ato legislativo que já refletisse o extenso debate que tem vindo a ter lugar por toda a Europa desde a adoção da Diretiva e da decisão final do Tribunal Europeu.
Podia ter seguido a via alemã, e estabelecido que certos usos de obras protegidas por direitos de autor (por exemplo, usos de pequenos excertos) se consideram lícitos, e que os filtros só podem ser usados fora desse conjunto de casos; ou, ao invés, podia ter seguido as Recomendações da Comissão Europeia ou do Advogado Geral, que defenderam que uma transposição compatível com a liberdade de expressão deve cingir o uso de filtros aos a um conjunto limitado de casos (aqueles em que a disponibilização online acarrete um grave e irreparável prejuízo económico, como seria o caso das emissões desportivas ou aqueles casos em que a infração é manifesta e evidente).
De forma não surpreendente, o legislador português voltou a seguir o caminho mais fácil, o da transposição literal da Diretiva. Digo de forma não surpreendente porque Portugal foi um dos três países que apoiou ativamente a Comissão na ação interposta pela Polónia e porque foram vários os grupos de interesse que sempre defenderam, de forma bastante pública, esta opção legislativa.
Ainda não é conhecida a versão final da proposta de Decreto de Lei do Governo. Encontramo-nos, pois, num dos últimos momentos em que nos podemos questionar se estamos confortáveis em avançar por uma via que muitos consideram ser incompatível com a liberdade de expressão, sem que tenha havido espaço para um verdadeiro debate público.
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