Portugal e o Estado caloteiro
Os pagamentos em atraso do Estado a fornecedores totalizavam os 450 milhões de euros em junho. Estado de direito? Não! Pelo contrário, trata-se de uma vergonha institucional.
Ano após ano, o Estado português vai permanecendo na sua crónica condição de caloteiro. No final de Junho, os pagamentos atrasados do Estado junto dos seus fornecedores não financeiros, ou seja, por pagar há mais de 90 dias, totalizavam cerca de 450 milhões de euros (dados da Direcção Geral do Orçamento – DGO). Entre os principais caloteiros encontravam-se os Hospitais EPE (“entidades públicas empresariais”) e a Administração Regional, representando 43,0% e 30,6% do total de atrasados, respectivamente. Em época de pandemia, o Governo tem falado muito sobre a necessidade de acelerar pagamentos. Mas, em face da evidência, não há como iludir os factos: o Estado continua a prejudicar os seus fornecedores e a agir ilegalmente.
A União Europeia possui desde 2011 uma directiva que estipula prazos máximos para os pagamentos a realizar pelos Estados membros junto dos seus fornecedores. Trata-se da directiva europeia 2011/7/EU, que Portugal transpôs para o seu ordenamento jurídico em 2013. Assim, nas relações comerciais entre os Estados membros e os seus fornecedores o prazo máximo estipulado na directiva é de 30 dias, podendo o prazo ser alargado para 60 dias em casos estritamente excepcionais. A directiva estabelece também penalizações: as entidades públicas que incumprirem os prazos da directiva são obrigadas a pagar juros de mora, à taxa de referência do Banco Central Europeu acrescida de oito pontos percentuais.
Há países que levam a sério esta directiva europeia, outros não. A Irlanda, por exemplo, leva a directiva a sério. Trimestralmente, o Governo irlandês publica o total de pagamentos realizados por cada departamento governamental e, para além disso, cada departamento discrimina o total de pagamentos consoante os prazos de realização. Mas, ao contrário das autoridades portuguesas, que utilizam um prazo de referência de 90 dias para registarem na informação que é pública a existência de um pagamento atrasado, as autoridades irlandesas utilizam o prazo de 30 dias previsto na directiva europeia. Mais: a administração pública irlandesa tem como política oficial pagar, não a 30 dias, mas sim a 15 dias.
Os relatórios de pagamento a fornecedores da administração pública na Irlanda, para além de incluírem o total de pagamentos realizados, discriminados entre prazos de realização de 15 e 30 dias, incluem também os juros pagos a terceiros em resultado dos seus pagamentos atrasados. Na minha opinião, trata-se de um exemplo de transparência e de boa prática que deveria ser seguido em Portugal, onde infelizmente as más práticas continuam a ser a regra. É também a prova de que na Irlanda a lei é para cumprir, mesmo quando a penalização recai sobre o Estado, e não apenas para fazer de conta como tende a suceder em Portugal sempre que o prevaricador está na administração pública. Resta acrescentar que na Irlanda quase não há atrasados.
Em Portugal a situação é diferente. Continuamos a observar pagamentos atrasados e a administração pública continua a utilizar um prazo de pagamento que não faz sentido face ao que consta na directiva europeia. Esta foi transposta para a legislação nacional, mas na realidade é como se não existisse. A informação que é conhecida diz respeito aos montantes por pagar (vide DGO), aos prazos médios de pagamento que vão sendo publicados por várias entidades esparsas (DGO, DGTF, o Portal Autárquico, entre outras), mas pouco mais. Os dados permitem apenas concluir o óbvio, ou seja, que há dezenas de municípios que pagam em média muito para além dos 30 dias estabelecidos na Europa, e que o mesmo se passa no sector da saúde e na administração regional. A própria Direcção Geral do Orçamento paga em média a 116 dias!
Nos últimos anos tem havido uma evolução positiva, mas ainda assim insuficiente. No final de 2013, os pagamentos atrasados há mais de 90 dias totalizavam então quase 2.000 milhões de euros. No final de Junho deste ano, os atrasados representavam cerca de um quarto daquele valor. Todavia, enquanto existirem atrasos tão persistentes quanto aqueles que existem e, sobretudo, enquanto permanecer a atitude permissiva do Estado face a estas práticas, as administrações públicas não estarão a cumprir as leis que têm de cumprir. As autoridades estarão, sim, a sonegar aos seus fornecedores o direito ao recebimento atempado dos valores em falta e, provavelmente, também o direito aos juros indemnizatórios. Estado de direito? Não! Pelo contrário, trata-se de uma vergonha institucional.
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