PortugalPapers: Sobram perguntas, faltam respostas
Vinte operações comunicadas pelos bancos à Autoridade Tributária relativas à transferência de dez mil milhões de euros para offshores terão passado ao lado do escrutínio do Fisco. O que se passou?
Aí está, já temos os nossos PortugalPapers. Um conjunto de 20 transferências para offshores no período 2011-2014 no valor de cerca de dez mil milhões de euros que terão sido comunicados pelos bancos à Administração Tributária (AT), como impõe a lei, e que, apesar disso, não constavam das estatísticas fiscais. E só ‘apareceram’ na última atualização destes números, no final de 2016. Isto é o que se sabe agora, portanto, sobram as perguntas, faltam as respostas, a primeira das quais, a mais importante: as transferências comunicadas ao Fisco foram alvo de tratamento fiscal, leia-se os contribuintes que expatriaram este dinheiro pagaram os devidos impostos?
A notícia é do Público, foi aqui escolhida como notícia do dia no ECO Login de ontem e foi desenvolvida também pelo ECO ao longo do dia. Perdoem-me o texto mais longo, resulta apenas da necessidade de evitar o populismo a que este tema se presta, mesmo quando se fala de transferências devidamente comunicadas e, por isso, presume-se, dentro da lei que as regula. Nas últimas horas, as transferências comunicadas passaram a ‘fugas ao fisco’. É assim mesmo?
Em primeiro lugar, já se sabe, há um problema de informação e estatística. Em 2010, o secretária de Estado Sérgio Vasques, do governo de Sócrates, iniciou o tratamento e consequente divulgação de estatística das transferências para paraísos fiscais, no valor e na praça offshore escolhida. Com o novo governo de coligação, Paulo Núncio deixou de publicitar estas transferências, por ato ou omissão. E as referidas estatísticas voltaram a ser publicadas em abril de 2016, com Rocha Andrade. Vamos lá ver, não há boas razões políticas para esconder essa estatísticas, a sua divulgação deveria ser obrigatória, e pelo INE, e não estar nas mãos do decisor político.
A não divulgação de informação é um mau princípio. Não encontro boas explicações, e sabemos que não é por incapacidade técnica da Autoridade Tributária. Talvez tenha sido com o objetivo de evitar o conhecimento destas operações – mesmo das legais, das que foram reportadas ao fisco – no momento em que havia um plano da troika com medidas de austeridade severas. Mesmo este argumento não é suficientemente relevante para esconder informação. E ainda bem que Rocha Andrade voltou a publicitar estes dados. Por um princípio de transparência, que deveria ser sempre a prioridade do Estado, mais ainda do Fisco.
Em segundo lugar, estas transferências comunicadas pelos bancos ao Fisco foram ou não alvo de tratamento fiscal, isto é, pagaram os impostos devidos? Aqui é que começa o problema. E a necessidade imperiosa de explicações, a começar pelo atual secretário de Estado e pela presidente da AT, Helena Borges. Mas também de Paulo Núncio e dos presidente da AT à data dos factos, isto é, de José Azevedo Pereira e de Brigas Afonso.
Em declarações ao ECO, Paulo Núncio afirma que “os relatórios de combate à fraude e evasão fiscal dos anos de 2011 a 2015 confirmam que os dados conhecidos relativos às transferências para paraísos fiscais foram cruzados e tratados pela inspeção tributária da AT. Em particular, e de acordo com o Relatório de combate à fraude e evasão fiscais do ano de 2015, só no ano de 2015 foram realizados 377 procedimentos inspetivos pela AT a transferências efetuadas para paraísos fiscais”. E acrescenta que não teve conhecimento “da situação descrita relativamente ao não tratamento de parte das declarações dos bancos pela Autoridade Tributária”. Ficamos (quase) na mesma.
O que disse Rocha Andrade, citado pelo Público: As divergências (quais, exatamente?) fora detetadas no final de 20115 e início de 2016, quando o governo voltou a fazer o tratamento estatístico das transferências para offshores. Entre abril de 2016, quando as estatísticas voltaram a ser publicadas, e o final do ano, apareceram nas ditas tabelas as referidas 20 operações no valor de dez mil milhões de euros.
O governo acrescenta que estão agora a ser alvo de tratamento por parte da inspeção. Se bem percebo o que esta resposta quer dizer, é que o Fisco recebeu as comunicações dos bancos e outras sociedades financeiras e não desencadeou qualquer inspeção para garantir a sua legalidade. Nem todas as operações são alvo de inspeção, como é evidente.
Paulo Núncio recorda, ao ECO, que só no ano de 2015 foram feitas 377 inspeções a transferências para paraísos fiscais. Mas a não existência de inspeções significa que estas operações ‘escaparam’ ao pagamento de impostos nos casos em que são devidos? Se é assim, não faz sentido. E a Autoridade Tributária (AT) terá explicações a dar, porque recebeu dados e não fez o trabalho que lhe competia. Ou houve uma ordem superior para não tributar essas operações em particular? Se este hipótese é possível, algo de muito mal vai na Administração Fiscal quando o poder político tem poder – passe o pleonasmo – para dar ordens à AT e impor uma agenda política. Onde está a independência da AT?
Depois, se a Inspeção Geral de Finanças já está a investigar o que se passou, porque é que ainda não há resultados dessa investigação? Tanto tempo para perceber o que se passou com transferências que foram comunicadas pelas entidades financeiras é pouco menos que incompreensível.
Do que o ECO apurou, há pelo menos um facto que (nos) descansa. O prazo de caducidade da liquidação de eventuais impostos ainda não está esgotado e, nos casos em que estão em causa transferências não declaradas pelos contribuintes – pode ser este o problema, apesar de terem sido comunicadas pelos bancos – o prazo de caducidade aumentou, por decisão de Paulo Núncio, para 12 anos, portanto, o Fisco tem muito tempo para liquidar algum imposto ainda em falta. Valha-nos isso.
Finalmente, como perceberam, há ainda tantas perguntas sem resposta que me atrevo a dizer que os PortugalPapers podem revelar-se o escândalo do século ou apenas uma falha administrativa e estatística sem consequências, já corrigida, e com pouca relevância política. A dúvida, essa, é que não pode permanecer. Porque não é possível um nível de impostos como o que os portugueses pagam e, ao mesmo tempo, a dúvida sobre a tributação de dez mil milhões de euros que saíram do país para paraísos fiscais. Os partidos querem explicações. Eu também.
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