
Propinas de mestrado: A discussão que escolhemos não ter
Se o Ministério dá liberdade às escolas, como na vida, essa liberdade não vem sem responsabilidade e deve ser mensurável.
Enquanto perdemos tempo a discutir cêntimos por mês na propina de licenciatura, uma discussão muito mais interessante podia estar a ser tida: as propinas de mestrado. Se no caso da licenciatura o congelamento foi feito num teto máximo (697€, em 2020), o congelamento das propinas de mestrado foi em tudo mais arbitrário ou irracional – congelaram-se os valores à data, fixando-se iniquidades.
Com a propina de licenciatura tão baixa, as instituições de ensino superior (IES) dependem cada vez mais do Orçamento do Estado (OE), da sua verba e respetiva fórmula de distribuição. A fonte de diferenciação na composição das receitas e, consequentemente, na oferta formativa é a receita dos mestrados, onde os valores das propinas estiveram liberalizados. Em 2020, a reboque do fervor ideológico, também nos mestrados as propinas foram congeladas, cristalizando no tempo as desigualdades de decisões passadas.
Em Portugal, nas áreas de economia, gestão e finanças, que conheço melhor e onde há mais diferenças, há mestrados, de menos de dois anos, a custar 12 000€ ou mais, e outros de faculdades também bem cotadas nos rankings a custar 1 500€ ou menos, por ano. A primeira faculdade, se tiver 2 000 alunos a pagar 12 000€, arrecada 24 milhões de euros. A segunda, por ano, e com o mesmo número de estudantes, totalizaria apenas 3 milhões de euros. É evidente que esta diferença de financiamento, meramente exemplificativa, tem um impacto enorme, tanto na qualidade dos professores, através da competitividade dos salários que podem ser pagos, como também nas infraestruturas ou em todas as outras vertentes que compõem um ensino de qualidade.
Claro que estes efeitos são cumulativos e autoalimentam-se. Uma faculdade com propinas mais altas tem mais receitas, consegue pagar melhores professores, oferecer melhor ensino, posicionar-se melhor nos rankings, atrair mais e melhores alunos e professores e o ciclo recomeça.
O descongelamento, apresentado pelo Ministério de Fernando Alexandre, não se cingiu às licenciaturas, mas abrangeu também os mestrados – e já não era sem tempo. Talvez, a prazo, possamos ver os ajustamentos que o mercado tem vindo a pedir, melhorando inclusivamente os rácios de preços. O modelo que vigorou até agora foi uma forma dissimulada, até inábil, por carecer de reflexão, de oferecer rendas, pelo menos relativas, às faculdades de propinas mais altas – num mercado com mais procura do que oferta, as vagas são preenchidas com um diferencial de preço alimentado artificialmente por um congelamento.
Contudo, há outra questão que me preocupa: a desigualdade no acesso a estes mestrados. Enquanto na licenciatura o modelo de acesso é centralizado, claro e completamente objetivo, sendo as regras do jogo conhecidas à partida, em alguns mestrados tudo é mais vago. Há critérios valorativos ou subjetivos, entradas ad hoc, e sistemas difíceis de perceber. Para além disto, se na licenciatura a propina não é um entrave, no mestrado, quando falamos destes valores, é evidente que constitui uma barreira.
Temos de garantir que, independentemente das condições sociais de origem, não há estudantes meritosos que ficam para trás. As escolas devem ser livres para valorarem os seus programas, mas devem ser responsabilizadas por garantir a ação social necessária. À primeira vista, até poderíamos pensar que este encargo seria dos mesmos organismos que financiam as bolsas públicas para a licenciatura. Mas se assim fosse, propinas altas seriam uma forma das faculdades, indiretamente, arrecadarem uma maior fatia do OE. Se o mercado reconhece determinado valor a um mestrado, as IES devem ser livres de o cobrar, mas têm de garantir que usam parte desse ganho, enquanto organizações públicas que são, para financiar a inclusão de todos os que mereçam estudar nestas instituições e não reúnam as condições socioeconómicas necessárias.
As bolsas não devem estar sujeitas a tetos anuais ou outros limites, devem antes depender apenas da satisfação dos critérios supramencionados. De qualquer outra forma, as IES não estão a cumprir a sua função de garantir a justiça de oportunidades, de garantir que a escola não é promotora de desigualdades, mas um meio de elevação social.
Se o Ministério dá liberdade às escolas, como na vida, essa liberdade não vem sem responsabilidade e deve ser mensurável. Cada IES pública deveria publicar a percentagem da receita dos mestrados consignada a bolsas, os critérios de acesso, o número de bolseiros e o valor médio da bolsa. Espero que as instituições percebam a importância desta transparência, porque, se não forem cristalinas, certamente este cenário não durará muito tempo.
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