
Sejamos tecnologicamente neutros (em tudo, já agora)
Hoje, o sistema elétrico precisa de rapidez no controlo de frequência, precisa de controlar de forma dinâmica a tensão, precisa de armazenamento, precisa de diferentes formas de flexibilidade.
Desde o apagão de abril, a Red Elétrica tem operado o sistema em modo de segurança reforçada, mobilizando mais centrais a gás e limitando a geração nas centrais renováveis, sobretudo solares. Tudo isto tem um preço. E um seguro comprado à última hora, e de improviso, não é barato, nem é eficiente. Notícias recentes falam num sobrecusto superior a 800 milhões de euros até setembro. Esta fatura elevada continuará a aumentar e terá de ser paga enquanto durar o modo de operação reforçado, ou seja, até que entrem plenamente em vigor as regras e procedimentos que permitem que as centrais solares e eólicas contribuam para a estabilidade do sistema. Isto só deverá começar a acontecer em 2026. Digo começar, porque estamos perante uma transformação que demora tempo a implementar e consolidar.
Portugal, por exemplo, tem feito bastante para garantir que a integração de solar e eólico é compatível com a estabilidade do sistema. Por essa razão, embora igualmente afetado pelo apagão, não pôs em prática este modo de segurança reforçada, em grande medida porque já tinha incorporado essa margem de segurança nas próprias condições de ligação das centrais renováveis que entraram no sistema nos últimos anos. Ao contrário do que acontecia em Espanha, em Portugal as centrais solares já recebiam instruções da REN para contribuir para o controlo dinâmico de tensão.
Como os sistemas estão interligados e funcionam, na prática, de forma integrada, os riscos que se foram acumulando do lado espanhol eram riscos ibéricos, como se viu no dia 28 de abril. Os sistemas elétricos interligados devem ser, necessariamente, sistemas colaborativos, que devem responsabilizar todos os agentes que nele intervêm. Os gestores globais do sistema – a RE e a REN – gerem e dirigem, mas têm o fazer com a colaboração da geração, com a colaboração da procura, e em estreita articulação entre si. Para que tudo funcione, convém que as regras, procedimentos e sistemas de controlo sejam, senão os mesmos, pelo menos compatíveis e coerentes entre si. Não parece ter sido esse o caso.
A fatura da operação reforçada posta em prática pela Red Elétrica não é um custo das renováveis intermitentes, muito menos uma fatura escondida do solar e eólico, como se fosse algo que devesse levar a uma revisão de prioridades em matéria de política energética. Juntamente com os custos diretos do apagão – que serão seguramente elevados e terão de ser pagos por alguém -, a fatura total será sobretudo o custo de não se ter adaptado a gestão e operação do sistema às necessidades (conhecidas) de um sistema elétrico crescentemente dominado por geração variável, não síncrona.
Por outro lado, importa dizer que a fatura desta estabilidade será tanto menor quanto menos se procurar recriar as condições de um sistema dominado por geração síncrona e mais se tirar partido do potencial, incluindo do potencial de flexibilidade, das renováveis intermitentes e da eletrónica de potência.
O sistema elétrico não precisa necessariamente de centrais térmicas despacháveis, de nuclear para garantir o baseload, ou da inércia associada à massa girante da geração convencional. O que sistema elétrico precisa é de determinados ativos para prestar determinados serviços. Ativos e serviços que permitam controlo dinâmico de tensão, que permitam controlo de frequência (com rapidez crescente), que permitam gerir congestionamento de rede. Em suma: os ativos e serviços necessários para garantir que a rede elétrica pode operar dentro das margens regulamentares de segurança e fiabilidade.
Como estes serviços podem ser prestados por diferentes tecnologias, importa adotar mecanismos concorrenciais, que assegurem eficiência. Isto implica, entre outras coisas, desenhar e pôr em prática incentivos adequados – incentivos que penalizem a não prestação desses serviços, incentivos que premeiem e remunerem o investimento em ativos que prestem esses serviços.
Os reguladores têm aqui um papel determinante. Definidas, de forma transparente e escrutinável, as necessidades do sistema, os reguladores devem promover mercados de serviços de sistema, incluindo mercados de capacidade, que permitam que a Red Elétrica e a REN, de preferência de forma articulada, tenham os instrumentos necessários para garantir a estabilidade e segurança da operação.
Dito de outra forma: O papel do regulador não deve ser apenas o de moderar (no imediato) os custos para os utilizadores de rede que possam advir de investimento excessivo, mas também o de promover e dar os incentivos adequados para que o investimento que o sistema elétrico precisa para se transformar seja efetivamente feito. Deve ser, portanto, sobretudo uma colaboração, e não uma relação adversarial, em que o regulador assume exclusivamente a defesa dos interesses imediatos dos consumidores. A modernização (necessária) do sistema deve assentar neste pressuposto colaborativo e transparente.
Em 2019, o país precisava de MW de solar. Os leilões – que nunca são perfeitos e podem sempre ser melhorados -, foram o instrumento escolhido para atribuir acesso a um recurso público escasso (a rede), procurando que esses MW maximizassem o ganho para o consumidor. Hoje, o contexto financeiro e elétrico mudou, as necessidades são outras, e esse modelo está esgotado e deve ser revisto.
Hoje, o sistema precisa de rapidez no controlo de frequência, precisa de controlar de forma dinâmica a tensão, precisa de armazenamento, precisa de diferentes formas de flexibilidade. Transformemos essas necessidades em leilões que procurem e remunerem o investimento nos ativos que satisfaçam essas necessidades; façamo-lo de forma transparente e concorrencial – e que ganhe o melhor. Este é o único “estudo de custos totais para o sistema” de que precisamos, porque leilões competitivos, devidamente desenhados para procurar certos ativos e certos serviços, são a única forma de assegurar que o futuro se constrói com estabilidade, com segurança e ao custo (total do sistema) mais baixo.
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