Visões virais

Recupera-se então o “estado de contingência”, numa lógica preventiva de curto prazo com a ilusão de se estar a prevenir quando já se está a reagir.

Com o final das férias regressa o sentido da realidade. Para ser mais incisivo devo dizer que regressa o medo da realidade. Passada a ilusão da praia e do campo, do céu e das flores, toda a gente se esqueceu que o vírus não tirou férias e que esteve ocupado em expandir-se pelo mundo e por cada quilómetro de Portugal. Precisamente em Portugal, o Primeiro-Ministro vive feliz e contente e o Presidente da República mergulha em praias várias para acabar no clássico passeio pela Feira do Livro.

Compreende-se a aparente naturalidade, quer do Primeiro-Ministro, quer do Presidente da República. Apesar da desfaçatez de alguns muitos comportamentos, o que constitui um péssimo incentivo para os portugueses por natureza e feitio já demasiado descontraídos, os dois políticos vivem numa bolha de protecção e cuidados intensivos, tendo neste sentido o privilégio que o comum dos mortais não sabe que existe nem nunca terá na sua existência. Nenhum dos titulares viaja em transportes públicos, trabalha em estabelecimentos comerciais ou ocupa um cubículo num edifício de escritórios, partilhando o espaço e a ventilação do ar com uma ou duas centenas de cidadãos. Eis a descrição de uma câmara de contágio.

Por falar em edifícios de escritórios, alérgicos como são à natural circulação do ar e dependentes da ventilação assistida do ar condicionado, refira-se que uma investigação realizada no Reino Unido, precisamente a um edifício de escritórios, detectou a presença do vírus em todos os filtros instalados nos 56 andares do elegante prédio. Perante tal constatação, como proceder? Máscaras, fatos lunares, desligar a ventilação assistida, transferir o aparato logístico para o jardim mais próximo? O sol não brilha o ano inteiro e o frio e a chuva são um convite à instalação da fauna viral.

É um facto que a possibilidade do trabalho remoto é uma opção apenas para algumas profissões e circunstâncias. No entanto, o trabalho remoto é um retrocesso civilizacional disfarçado pela sofisticação digital, pois a lógica é a mesma que vigora numa colónia penal onde, sob a persistente vigilância de câmaras permanentes, as unidades produtivas debitam tarefas e decisões como autómatos inseridos no desconforto de um lar transformado em centro de detenção. Sublinhe-se que a imposição é benigna e visa a estabilidade e a segurança de cada um e de toda a comunidade. Mas em nome da segurança mata-se a liberdade.

Agora, subitamente, depois da suspensão da anormalidade normal através da aspirina das férias, Portugal e a Europa enfrentam uma precoce subida da circulação viral que, impulsionada pela biologia e pelo comportamento errático e irresponsável das pessoas em geral e dos cidadãos em particular, ameaça a tranquilidade e segurança de todos. Agora descobrem que o regresso ao trabalho é uma obrigação, ao mesmo tempo que racionalizam que as escolas vão abrir, que a circulação de pessoas vai aumentar, que os contactos desejados ou indesejáveis vão disparar exponencialmente. Recupera-se então o “estado de contingência”, numa lógica preventiva de curto prazo com a ilusão de se estar a prevenir quando já se está a reagir, sublinhando que é necessário um agravamento no “regime de disciplina sanitária”. Disciplina é uma palavra estranha ao comportamento nacional, a não ser que seja apresentada com os tons negros da ameaça, do medo, da doença, finalmente da morte. O que o Governo precisa é de um infalível “algoritmo mutante”.

A questão das escolas e das universidades é um assunto sério. Esta é já definitivamente a Geração Covid. Primeiro, privada da circulação normal e descontraída no espaço insubstituível da escola ou do campus, lugares de aprendizagem social informal. Depois, definitivamente diminuída nas suas perspectivas futuras, privada de uma liberdade para aprender em segurança e para reprovar com naturalidade. Nesta mesma lógica distorcida da realidade, os professores transformam-se em “trabalhadores na linha da frente”, pois qualquer regime presencial implica um risco que pode ser controlado mas nunca eliminado. De certo modo, os professores são objecto de um processo não intencional de proletarização, uma certa lógica associada ao socialismo real em que os trabalhadores intelectuais acabavam, por necessidade das circunstâncias ou por imposição da autoridade, a cumprir funções vitais à grande batalha da produção. Reféns do vírus de uma sociedade líquida, expulsos da “Torre de Marfim”, em vez dos “Engenheiros das Almas”, intelectuais e professores sofrem uma profunda mutação e apresentam-se à nova sociedade como “Operários do Futuro”.

No Outono do nosso descontentamento, a lógica do controle científico e racionalista da sociedade vai ser a norma e vai ser a regra. O estabelecimento de uma hierarquia burocrática e tecnocrática, movida e motivada pela monitorização e quantificação dos movimentos e das acções, irá instalar-se no topo da circulação normal e democrática. Directores-Gerais, Estatísticas Diárias, Medições Horárias, Quotas de Supressão e Recompensas. Parece que vamos passar a habitar um planeta flutuante onde não há tempo para contemplar a geometria do mundo nem para contar os incontáveis cometas. Por imposição viral, as casas vão deixar de ter ângulos rectos, as roupas vão passar a ser coloquiais, suspenda-se pois toda a especulação na idade da sobrevivência.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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