Quatro passos para pôr os transportes públicos a dar lucro
O metro de Hong Kong dá quase dois mil milhões de euros em lucros todos os anos, mas como o fazem? Em parte graças a particularidades do território, mas muitas medidas são importáveis.
Os resultados da Carris, do Metro de Lisboa, da STCP e da Metro do Porto estão sempre no vermelho, embora se vá melhorando ou agravando os prejuízos. E embora muitas das grandes capitais europeias vejam os seus sistemas de transportes públicos fechar a perder, como pode ler neste artigo do ECO, existem outras paragens onde a apresentação do relatório e contas do sistema de transportes coletivos não é um momento de desagrado.
É o caso de Hong Kong, por exemplo, onde o lucro anual é de quase dois mil milhões de euros, escreve a CNN. Como o fazem? Por um lado são favorecidos pela sua organização territorial (que também não acontece por acaso), por outro as medidas implementadas pela empresa gestora, a cotada MTR da qual o Governo é o maior acionista, são agora objeto de estudo por sistemas de transporte público de todo o mundo, que querem o que Hong Kong tem.
Como criar um sistema de transportes públicos que dá lucro? Basta seguir alguns passos.
Aumentar (muito) o preço da gasolina
Em 2015, os automobilistas de Hong Kong revoltaram-se e a Shell viu-se forçada a defender-se quando um estudo divulgado pelo site especializado GlobalPetrolPrices.com mostrou que a gasolina de Hong Kong era a mais cara do mundo, uma estimativa que se mantém. O preço destaca-se especialmente na Ásia, onde a maior parte dos países tem preços bastante inferiores aos europeus para os combustíveis.
Em parte, o preço deve-se aos impostos muito altos do governo local, que tem como política de proteção ambiental o desincentivo à utilização do transporte motorizado individual. Ao South China Morning Post, o porta-voz da Associação do Automóvel de Hong Kong, James Kong, afirmou que os preços eram ridículos, e não só por causa dos impostos, que descreveu: “O Governo cobra cerca de seis dólares de Hong Kong (0,70€) por litro em impostos, mas por cima disso… ainda falamos de cerca de nove dólares de Hong Kong (1,08€) por litro, o que é caro comparado com outros países”.
Mas o modelo de desincentivo ao uso do automóvel não se fica pelos preços da gasolina — a dificuldade em encontrar estacionamento, que chega a ser também ele muito caro, também ajuda a fazer com que as pessoas evitem andar de carro. Numa reportagem, a revista The Atlantic citava a estatística de que apenas seis em cada 100 veículos motorizados em Hong Kong são para uso pessoal. Nos EUA, o número está mais perto dos 70 em 100.
Tornar os transportes públicos na alternativa mais confortável
Como explica, ao ECO, Rosário Macário, professora e investigadora em Transportes do Instituto Superior Técnico, não se pode desincentivar o uso do automóvel com estas medidas drásticas sem pensar na contrapartida. “Temos de ter o cuidado de ter uma oferta de boa qualidade para dar a alternativa ao cidadão”, afirma, caso contrário, embora conduzir continue a ser dispendioso e inconveniente, o condutor sentirá que não tem outra hipótese que não sujeitar-se.
É por isso que o sistema de metro de Hong Kong também tem uma enorme preocupação com a qualidade. O antigo executivo-chefe da MTR, Phil Gaffney, afirma que parte do sucesso do metro desta cidade-estado chinesa está na capacidade de ter comboios que passam com apenas dois minutos de intervalo. “Quando as pessoas não têm essa certeza de que vamos cumprir, começam a empurrar-se para dentro dos comboios e o tempo de permanência das carruagens na plataforma sobe”, explicou o CEO ao Financial Times.
É por isso que importa que os passageiros saibam que outro comboio está mesmo aí. “Quando os passageiros estão confiantes no sistema, decidem na plataforma e se a carruagem estiver cheia não tentam entrar, porque daí a dois minutos vem outra”, esclarece.
Além disto, as linhas de metro de Hong Kong têm total acessibilidade para cadeiras de rodas e carrinhos de bebé, portas de vidro junto à linha para manter a maior segurança dos passageiros que estão na plataforma, sinalização clara e controlo de temperatura. Tudo para o maior conforto dos passageiros.
Aproveitar o valor dos transportes para outros setores
É do interesse da MTR, que é a operadora, que os transportes públicos sejam a alternativa mais confortável, fácil e barata de viajar pela cidade. Isto porque a MTR tem outro negócio que não o metro de Hong Kong: os centros comerciais.
O sistema, que já está a ser exportado para outros países, explora a vantagem de juntar num mesmo local um grande número pessoas, o que ajuda a gerar lucros aos setores do comércio e do lazer da cidade. O governo de Hong Kong, que é o principal acionista da empresa, dá à MTR os direitos dos terrenos onde a empresa constrói novas estações e linhas, o que permite à operadora vender ou alugar o imobiliário, cujo valor aumenta drasticamente com a introdução do transporte público.
As entradas e saídas das estações têm lojas e restaurantes que pagam uma percentagem ou uma renda à MTR, e a própria empresa é dona de vários centros comerciais e de dois dos maiores arranha-céus de Hong Kong, o que constitui a maior parte do lucro da empresa — não a bilheteira. Mesmo junto de outras empresas ou centros comerciais que não pertençam diretamente à MTR, a empresa recolhe percentagens em troca de levar os passageiros à sua porta.
Juntar toda a gente numa área pequena
A organização territorial de Hong Kong também joga a favor do resultado final das contas da MTR. Hong Kong é, já por si, uma área pequena: a área administrativa especial da China é constituída por uma ilha, a ilha de Hong Kong, pela península de Kowloon, e pelos territórios continentais mais próximos que se intitulam Novos Territórios.
Numa área mais pequena do que a da Grande Lisboa, da qual apenas 25% é urbana, Hong Kong junta mais de 7,3 milhões de pessoas.
A concentração de grandes números de pessoas em estreitos corredores urbanos facilita o trabalho às empresas de transportes, que conseguem servir um maior número de pessoas e arrecadar uma maior receita de bilheteira ao mesmo tempo que reduzem o seu investimento, tendo que se distribuir por um menor território.
E a concentração populacional não acontece por acaso. Em parte, são os condicionantes do território montanhoso e selvagem que dificultam a construção, mas por outro lado é também a capacidade dinamizadora da MTR. Rosário Macário resume-o com simplicidade: “O operador quando investe em imobiliário fá-lo de forma concentrada. É justamente por isso que depois resulta toda uma rede que tem uma grande densidade de utilização”.
Conclusão? As receitas de bilheteira de Hong Kong bastam para cobrir os seus custos operacionais, e ainda sobra, com uma percentagem que não é vista em lado nenhum do mundo: os bilhetes cobrem cerca de 185% dos custos operacionais. Segundo o relatório de contas de 2015, a MTR fechou esse ano com um lucro de 10,9 mil milhões de dólares de Hong Kong, cerca de 1,3 mil milhões de euros, grande parte dele vindo do seu braço imobiliário, mas com a bilheteira bem no verde.
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