Megaprocessos, falta de meios na PJ e delação premiada. Na Morais Leitão nada escapou, em debate sobre crime financeiro e económico

O diretor do DCIAP esteve reunido na Morais Leitão, juntamente com António Cluny e João Medeiros para debater "A investigação da criminalidade económico-financeira".

“Há falta de meios na PJ que prejudicam as investigações. De recursos humanos e de meios técnicos”. O problema já não é novo, mas Amadeu Guerra, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), não deixou de o abordar na Morais Leitão, onde uma sala cheia de advogados ouvia atentamente o segundo painel de uma conferência organizada pela sociedade, subordinado ao tema “A investigação da criminalidade económico-financeira”.

A par de Amadeu Guerra, não faltaram oradores conhecidos: João Medeiros, sócio coordenador da equipa de contencioso penal da PLMJ, e António Cluny, representante de Portugal na Eurojust e ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

Foi numa conversa, moderada pela sócia da Morais Leitão Filipa Marques Júnior, de cerca de uma hora, em que se discutiu o estado da justiça e a sua celeridade, sem faltar menção aos famosos megaprocessos, ao papel dos advogados e à colaboração premiada.

Crimes cada vez mais internacionais

“Não tem sido fácil dirigir aquele departamento, mas vou fazendo o meu caminho”. Assim começa Amadeu Guerra por descrever a sua passagem pelo DCIAP, o seu “maior desafio profissional” até hoje, que dirige há já seis anos.

“Nos últimos anos, este departamento tem apostado na especialização dos seus magistrados. Apostámos na sua formação, em colóquios e sessões internas. Foi preciso criar uma nova estrutura dividida entre criminalidade violenta e a de corrupção e área bancária, e temos ainda pessoal especializado na área fiscal e fundos comunitários”, revelou o diretor do departamento que investiga a criminalidade mais complexa.

O maior desafio que têm enfrentado, porém, reside nas novas tecnologias, que influenciam fortemente a prática dos crimes económicos e financeiros, que são hoje cada vez mais complexos. “Desde a fuga ao pagamento de impostos, empresas de fachadas e paraísos fiscais… Hoje em dia, com o avanço das tecnologias, é muito fácil, por exemplo, aceder a um serviço online ao nível da banca e criar uma empresa de raiz na hora. Isto cria, depois, dificuldades ao nível da investigação”.

Também na análise de provas o paradigma já mudou, com a automatização dos documentos e as novas formas de encontrar evidências. “Aquilo que era o tradicional contabilístico, a documentação toda, passou a ser automatizado. Ficheiros encriptados, portáteis, pens… O ciberespaço, por exemplo, que é um espaço anónimo. A nossa investigação tem uma vertente nacional e estes crimes são, cada vez mais, internacionais. Nem todas as comunicações são suscetíveis de interceção e os criminosos sabem disso. É com esta realidade que temos de viver”.

Quanto à celeridade uma das soluções será começar a investigar mais cedo. “Chegámos à conclusão de que devíamos apostar na investigação quando os factos estão a ocorrer para sermos mais céleres. Pôr magistrados de outras jurisdições a atuar com o DCIAP”, referiu Amadeu Guerra, mas a falta de meios muitas vezes não permite a maior eficiência na investigação. “Penso é que é importante sabermos trabalhar e rentabilizar com os meios disponíveis, mas nos tribunais não há meios suficientes. Temos falta de recursos humanos, essencialmente na PJ. E de recursos técnicos”.

Uma das respostas à falta de pessoal passará por uma maior cooperação entre outras equipas. “A cooperação judiciaria é decisiva e tem mecanismos que há dez anos não existiam na troca de informação”, salientou Amadeu Guerra. Nesse sentido, António Cluny falou do papel da Eurojust no âmbito da cooperação internacional no combate aos crimes financeiros e económicos.

“A Eurojust tem desenvolvido um trabalho importante, nomeadamente através de reuniões de cooperação, que fomentam a troca de informação imediata e direta e a coordenação nas investigações, para que as ações num país não prejudiquem as do outro e a diferente níveis de jurisdição”, disse o magistrado do Ministério Público.

Da parte de Portugal, os pedidos para cooperar são escassos. “Cá temos uma timidez em pedir essa ajuda. É pena. Os nossos magistrados quando chamados fazem sempre boa figura porque vão muito bem preparados. Devíamos usar esses trunfos que temos”, adianta António Cluny.

Quanto a números, o procurador-geral adjunto referiu que existem 6294 empresas inscritas na Eurojust, suspeitas de processos criminais. Uma realidade cada vez mais assustadora.

Megaprocessos: serão inevitáveis?

Na conversa não podia deixar de se abordar a complexidade dos megaprocessos e o tempo em que se arrastam. Nesse sentido, João Medeiros, sócio da PLMJ, falou na “ausência de um processo equitativo” e de prazos apertados para a classe dos advogados, sujeitos ao prazo de 30 dias para apresentarem a defesa depois de receberem o processo, quando do lado da investigação não há prazos definidos.

“Confrontamo-nos com investigações de dois ou quatro anos, que chegam a nós em toneladas de papéis. Para o advogado há uma falha do processo equitativo”, referiu o especialista em contencioso penal.

Amadeu Guerra questionou se dividir processos desta dimensão ajudará na celeridade — “se partirmos os processos aos bocados, pode demorar também. É preciso discutir isso” — e concluiu dizendo que o maior bloqueio à celeridade é o facto de para a investigação não existirem meios.

“Para evitarmos que os processos durem este tempo todo é necessário que existam meios, nomeadamente na investigação. A PJ não os tem neste momento. Posso afirmar que talvez neste momento, em meios tecnológicos, o DCIAP tenha mais meios do que a PJ — o que é um contrassenso”.

A recolha de prova é outro aspeto crucial que dificulta a investigação. “Nos megaprocessos de hoje não podemos dizer que encontramos toda a prova. Antes via-se uns e-mails e uns faxes, hoje não, é muito mais complexo. O DCIAP tem feito um esforço no sentido de digitalizar todos os processos e a prova, temos tido um avanço muito grande”, referiu.

Haverá espaço para colaboração premiada?

O debate terminou com um tema quente e nada novo: a existência de colaboração premiada na justiça portuguesa. Se por um lado, Amadeu Guerra e João Medeiros admitiram que seria um bom avanço nos processos, António Cluny mostrou-se mais reticente.

O diretor do DCIAP afirmou que seriam mecanismos úteis, não só para investigação como para instrumento de defesa a utilizar pelos advogados.

O advogado da PLMJ concordou e disse justificar-se haver colaboração em termos de direito premial. “Custa-me como jurista esta ideia de colaboração e de delação como uma traição. Não pode é ser como no sistema caso Lava Jato [no Brasil este sistema na justiça existe], em que havia cláusulas que dizia que se os arguidos falassem, ficariam com a pena reduzida em dois anos”.

António Cluny mostrou-se mais cético. “Não dizendo, como no caso das touradas, que é uma questão de civilização, acho que é de cultura. Há questões culturais. Os nossos códigos são mais rígidos porque são feitos para pessoas que desconfiam do poder. Seria um modelo em que pessoas com um nível de vida superior teriam vantagem sobre outros”, afirmou.

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