O que é que a Concorrência descobriu no cartel da banca?

Durante mais de dez anos, vários bancos trocaram informação comercial sensível entre si. Estas práticas levaram a AdC a multar a banca em 225 milhões. O que descobriu o regulador?

Durante mais uma década, 14 bancos em Portugal partilharam informação comercial sensível entre si, restringindo a concorrência no mercado de crédito, prejudicando famílias e empresas, segundo a Autoridade da Concorrência. Estas práticas anticoncorrenciais levaram o regulador a condenar os bancos ao pagamento de uma coima inédita no valor 225 milhões de euros. Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP, Santander Totta, BPI e Banco Montepio foram os principais visados neste caso. O que descobriu a AdC?

Que informações trocaram os bancos?

A informação sensível trocada entre os bancos dizia respeito, genericamente, “às duas principais variáveis estratégicas sobre o comportamento comercial de uma empresa”:

  1. Condições comerciais, como preços/taxas de spread que não se encontravam no domínio público no momento da troca de informação ou que eram de difícil acesso ou sistematização;
  2. Valores mensais de produção de cada banco, em euros (dados individualizados de cada banco sobre quantidades “comercializadas”, ou seja, in casu, informação desagregada relativa ao valor de crédito concedido em euros em determinado período, normalmente correspondente ao mês anterior).

Ao partilharem essa informação sobre crédito para compra de casa ou crédito às empresas, cada banco poderia saber, com particular detalhe, rigor e atualidade, as características da oferta dos bancos concorrentes, o que permitia reduzir o risco da pressão concorrencial e a incerteza normalmente associada ao comportamento estratégico de um concorrente.

Prática institucionalizada

Segundo a AdC, esta troca de informação sensível tinha lugar regularmente, nomeadamente por email ou por telefone, por via de uma rede de contactos tendencialmente estável e institucionalizada. Era uma situação normal os trabalhadores de bancos concorrentes trocarem dados sensíveis entre si, e fazia parte do quotidiano de quem trabalhava nos departamentos de marketing ou nos departamentos comerciais dos bancos, descreve o regulador.

A troca de informação era reiterada e frequente, fazendo parte das funções dos trabalhadores dos departamentos de marketing e/ou de gestão de produtos. “Parte das tarefas dos colaboradores afetos aos departamentos envolvidos na troca de informação (normalmente marketing ou gestão de produto) compreendia necessariamente a articulação com os concorrentes para a obtenção de informação sobre as suas ofertas e condições comerciais”, refere a AdC. “Estava em causa uma prática perfeitamente enraizada no funcionamento do dia-a-dia”, nota ainda.

Por outro lado, o facto de os pontos de contacto serem sempre os mesmos demonstra a estabilidade da troca de informação entre as visadas. Era uma prática enraizada nos bancos que resistia à mudança dos trabalhadores.

Tudo isto levou o regulador a concluir que não se tratava “de uma troca informal entre amigos, como algumas visadas pretendem fazer crer”.

Conhecimento superior

As hierarquias sabiam do esquema de troca de informações. Provam-no vários emails da investigação da AdC. Aliás, o facto de quadros superiores conhecerem este circuito interbancário ajudou a prolongar estas práticas ilegais durante mais de uma década.

“A troca de informação entre os bancos integra as funções dos departamentos de marketing e gestão de produto das visadas, cujos colaboradores, com a anuência de diretores e administradores, garantiam a implementação e continuidade do sistema de troca de informação“, sublinha o regulador liderado por Margarida Matos Rosa na decisão final.

Os bancos rejeitam que as hierarquias soubessem deste intercâmbio de informações. A AdC contraria. Além dos emails a provarem a sua tese, o regulador diz que o facto de as trocas de dados “persistirem e manterem, como se viu, mesmo quando havia alteração de colaboradores, o que demonstra que se tratava de uma atividade institucionalizada dentro dos respetivos departamentos”, comprova o conhecimento dos quadros superiores.

Além disso, prossegue o regulador, face às características da troca de informação, nomeadamente o seu detalhe e intensidade, “não é crível que esta prática pudesse ter ocorrido ao longo de dez anos sem que as direções e administrações dos colaboradores que dela participavam tivessem conhecimento ou, pelo menos, devessem ter tomado conhecimento no exercício das respetivas funções de direção ou administração”.

Passagem de testemunho

O sistema de intercâmbio de informações estava institucionalizado e a rede de contactos era estável. As hierarquias tinham conhecimento disto. Mesmo com a mudança de colaboradores dentro dos bancos, estava assegurada a continuidade.

A AdC nota que havia o “cuidado” de os bancos manterem sempre atualizados os pontos de contacto nos vários concorrentes, garantindo que o fluxo de informação entre as instituições não era interrompido.

“Existia, inclusivamente, a preocupação de os colaboradores cessantes (na empresa ou naquela função) fazerem a “passagem de testemunho” ao novo colega relativamente aos concorrentes e à troca de informação”, conta o regulador.

A regra da reciprocidade

Todas estas trocas funcionam segunda a regra da reciprocidade: um banco fornecia informação sobre a sua oferta comercial em contrapartida de receber informação semelhante dos outros bancos.

“Verifica-se com base nos documentos juntos aos autos que a troca de informação tinha subjacente uma regra de reciprocidade, nos termos da qual cada visada facultava às demais visadas informação sensível referente às suas ofertas comerciais ou dados de produção no pressuposto de que receberia informação idêntica dos seus concorrentes”, refere a AdC.

Informação estratégica

Não eram informações quaisquer que os bancos trocavam entre si. Não eram propriamente informações públicas — pelo menos não no momento da troca. Eram informações apresentadas numa base desagregada por produto e individualizada por banco e que cobriam uma parte muito relevante da oferta desse produto ou serviço (como por exemplo, crédito à habitação).

Além disso, também dizia respeito a intenções de alteração de comportamento estratégico no futuro próximo ou reportava-se a informação relativa a condições comerciais em vigor. “É inaceitável” que os bancos o façam, pois desse modo alteram “artificialmente as normais condições de concorrência no mercado”.

Através da análise a vários emails, a AdC conclui, “sem grande esforço”, que se “trata de informação reservada e sensível que um qualquer banco não divulga ou partilha com os seus concorrentes“. E, ao fazê-lo, num contexto de antecipação de uma alteração de spreads para o futuro próximo, estava a revelar sua estratégia de negócio para o crédito à habitação.

O regulador deu conta ainda de outro aspeto curioso: a maioria dos bancos classificou integral, ou parcialmente, como confidencial para os outros visados toda a informação apreendida nas diligências de busca, relativas a spreads e dados de produção, com o fundamento de que tal informação constituía segredo de negócio.

Alinhamento nas comissões

Para lá da informação sobre a oferta comercial, os bancos também trocaram entre si informação respeitante à interpretação de legislação aplicável à sua atividade, designadamente em matéria de comissões.

“O teor dos emails analisados sugere claramente um propósito de alinhamento comercial face às dúvidas suscitadas pela aplicação daquela legislação sobre comissões”, explica a AdC, citando correspondência eletrónica entre vários bancos.

“Trocaram informação sobre a interpretação de diversa legislação ou normas setoriais aplicáveis com a finalidade de alinharem comportamentos que teriam, naturalmente, impacto na oferta dos produtos em análise na presente decisão”, considera o regulador.

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