Governo quer regular trabalho nas plataformas digitais. O que faz falta na lei?

O Governo quer regular o trabalho nas plataformas digitais. Entre os advogados, a questão não é pacífica. Há quem defenda uma nova definição de trabalhador e quem diga que a lei atual já é suficiente.

O Governo quer regular o trabalho prestado através das plataformas digitais, de modo a evitar abusos nestas relações laborais e a facilitar a distinção entre trabalhadores por conta de outrem e trabalhadores independentes. Esta é, contudo, uma questão polarizadora, entre os advogados ouvidos pelo ECO. Há quem diga que o Código do Trabalho é claro e suficientemente abrangente. E há quem diga que é preciso redefinir o conceito de horário laboral, local de trabalho e até de trabalhador.

No documento partilhado com os parceiros sociais como suporte para a discussão do Orçamento do Estado para 2021, o Executivo de António Costa deixava clara a intenção de avançar com a regulação das formas de trabalho associadas à transição digital, nomeadamente através da “adequação do enquadramento normativo, em matérias laborais e de proteção social do emprego, associado às plataformas digitais“.

O Governo frisava, então, que há passos a dar para reforçar os direitos, quer seja pelo reforço da transparência, quer seja pela melhoria do acesso à informação que permita a fiscalização destas formas de trabalho ou ainda pela melhoria dos instrumentos que permitem aferir se está em causa um trabalhador autónomo, subordinado ou legalmente equiparado. E remetia essa discussão para o Livro Verde do Futuro do Trabalho.

Entretanto, o Executivo partilhou com sindicatos e patrões algumas reflexões sobre os aspetos que serão considerados chave nesse Livro Verde, tendo destacado, nesse âmbito, o trabalho prestado através das plataformas digitais como um dos temas merecedores de maior atenção.

“O trabalho nas plataformas digitais, em expansão acelerada desde o início do século XXI, é um dos elementos mais nevrálgicos das discussões sobre o futuro do trabalho“, é salientado no documento ao qual o ECO teve acesso.

Apesar de reconhecer as oportunidades trazidas pelas plataformas digitais, o Governo sublinha que há “múltiplos riscos” a ter em conta, nomeadamente no que diz respeito ao tipo de vínculo laboral, o que afeta o acesso à proteção social e à formação profissional. O Executivo defende, por isso, que é preciso evitar “contratos desequilibrados, cláusulas abusivas, renúncias de direitos por parte dos colaboradores”.

Riscos e oportunidades ponderadas, o Governo indicou aos parceiros sociais uma série de prioridades, dizendo ser importante fazer, nomeadamente, uma aposta “em mecanismos jurídicos que tornem mais clara a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria”, estudando, por exemplo, a criação de uma “presunção de laboralidade” ajustada à prestação de trabalho através de plataformas digitais.

Estas questões não são, contudo, pacíficas, na comunidade jurídica. É que enquanto há advogados que concordam com o Executivo na necessidade de encontrar novos meios de distinguir trabalhadores dependentes de independentes — e defendem até novas definições para esses conceitos –, há outros que entendem que o Código do Trabalho já dispõe de ferramentas suficientes para esse fim, faltando apenas ajustamentos cirúrgicos e, sobretudo, uma aplicação mais firme do que já hoje está previsto na lei laboral.

Vem aí nova definição de trabalhador dependente?

Rui Valente, sócio responsável pela área de Direito Laboral na Garrigues em Portugal, sublinha que a relação contratual entre os trabalhadores e a plataformas digitais suscita dúvidas. O advogado defende, por isso, que é necessário reformular o conceito de trabalhador por conta de outrem e de prestador de serviços, bem como de horário de trabalho e de local de trabalho.

“A novidade e as particularidades da relação mantida entre os profissionais e as plataformas digitais são tais que o ‘encaixe’ nos tipos contratuais atualmente existentes será sempre difícil, ou, ao menos, muito forçado. Seria preferível estudar um novo tipo contratual para enquadrar este novo paradigma“, entende Valente.

O especialista refere, além disso, que, a existir o tal novo mecanismo de presunção de laboralidade que o Governo quer estudar, teria de ser de existência de prestação de serviços e não de trabalho dependente. Valente frisa, contudo, que esse mecanismo não deve sequer ser formulado.

De notar que, atualmente, já é possível um trabalhador ver o seu vínculo reconhecido a uma determinada plataforma, mesmo que não tenha um contrato dito tradicional. Esse reconhecimento parte de uma “avaliação casuística” dos Tribunais, que avaliam os “índices de laboralidade, “como sejam a existência de um local de trabalho, a definição do horário, ou a existência de instrumentos de trabalho fornecidos pela empresa”. Nesse caso, o empregador fica obrigado a pagar as contribuições sociais em falta.

O mecanismo que o Governo diz querer estudar no Livro Verde do Futuro do Trabalho seria um passo em frente em relação ao já existente, uma vez que seria adequado especificamente à realidade das plataformas digitais.

Para Sofia Monge, da Carlos Pinto de Abreu e Associados, esse mecanismo de presunção de laboralidade seria um “importantíssimo passo na proteção dos trabalhadores que exercem funções para estas plataformas“. “A existência desta presunção faria recair sobre o empregador o ónus de demonstrar o enquadramento desta relação numa prestação de serviços. Caso não lograsse demonstrar a existência de uma prestação de serviços prevaleceria a presunção de existência de um contrato de trabalho”, explica.

A advogada sublinha, por outro lado, que a discussão não se devia centrar na distinção entre trabalhador dependente e independente, isto é, “o problema não reside” nesses conceitos, mas na sua “utilização abusiva”, “enquadrando-se como prestação de serviços o que é, na verdade, um contrato de trabalho”.

Código do Trabalho é ou não suficientemente abrangente?

Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha Ecija & Associados, vai mais longe e deixa claro que, na sua opinião, nem os conceitos de trabalhador dependente e independente devem ser revistos, nem a definição de local de trabalho ou de horário laboral deve ser alterada, já que o Código do Trabalho é suficientemente flexível e abrangente para acolher estas formas laborais.

Assim, para o advogado, o Código do Trabalho já está preparado para as relações laborais implicadas no exercício de funções através das plataformas digitais e até já permite identificar trabalhadores por conta de outrem através da verificação dos indícios de presunção de laboralidade, admitindo apenas “aditamentos cirúrgicos” a esse último mecanismo.

“A nossa legislação laboral já nos permite de forma clara, nomeadamente, através da verificação dos indícios de presunção de laboralidade previstos no Código do Trabalho, saber se estamos perante um trabalhador subordinado ou um trabalhador independente“, diz. “Poderá ser criado e aditado, eventualmente, um indício novo a esta presunção de modo a que seja mais apta e focada em resolver de forma inequívoca esta qualificação“, defende.

Sandra Severino e Madalena dos Santos, da Pares Advogados, concordam. “Julgamos que os conceitos atuais são suficientemente abrangentes para as realidades existentes“, sublinham as advogadas, que referem que, quanto à presunção da laboralidade, o mecanismo hoje previsto já é satisfatório.

E acrescentam: “Julgamos que o legislador não deve, antecipadamente, presumir a existência de um contrato de trabalho em virtude da prestação de atividade em benefício das plataformas digitais na medida em que, em muitos casos, a mesma poderá não ser adequada”.

Filipa Sá Silva, da RSN Advogados, contraria estes advogados e defende que os instrumentos que distinguem os trabalhadores dependentes dos independentes devem ser clarificados, até para reforçar a proteção social dos trabalhadores e os seus direitos, nomeadamente em caso de despedimento. A advogada acrescenta, por outro lado, que é necessário seja feito um maior controlo do número de horas diárias que o trabalhador está a utilizar nas várias aplicações, verificar se o direito ao descanso está a ser respeitado, bem como o direito a um período de férias remunerado.

Simão Sant’Ana, da Abreu Advogados, oferece ainda uma outra perspetiva. O advogado defende que não se devem mudar os conceitos de trabalhador dependente e independente, horário laboral ou local de trabalho previstos na lei atualmente, mas entende que essas definições também não servem para as relações laborais em causa. Resultado: propõe a criação de um regime específico para “esta relação híbrida”.

“É necessário pôr termo a estas novas velhas formas de exploração”

É necessário avançar com a regulação do trabalho prestado através de plataformas digitais, mas mais urgente ainda é exigir que essas plataformas se comportem segundo as regras laborais já em vigor, sublinha Andrea Araújo, da CGTP, em declarações ao ECO.

“O problema não é do Código do Trabalho ou da contratação coletiva, mas sim dos governos que não exigem a estas plataformas que operem tal como exigem que operem as outras empresas. E tudo isto apenas porque é digital. Essa aura de ‘digital’ e de ‘modernidade’ não pode servir de pretexto para a desregulação e a ilegalidade”, sublinha a sindicalista.

Para a dirigente, é urgente reconhecer o estatuto laboral destes trabalhadores, como trabalhadores por conta de outrem, e promover a sua integração nos respetivos regimes da Segurança Social. “É necessário pôr termo a estas novas velhas formas de exploração que ressuscitam práticas laborais do século XIX“, acrescenta Andrea Araújo.

“No nosso entender, não existem novas formas de prestação de trabalho nem novas categorias de trabalhadores. O que existem são trabalhadores remetidos para fora do paradigma legal das relações laborais, com o intuito de desonerar as empresas de todos os custos e responsabilidades laborais, ao mesmo tempo que essas responsabilidades são passadas para os próprios trabalhadores”, atira a mesma sindicalista, referindo que o Código do Trabalho é “perfeitamente aplicável” a estas situações.

Araújo conclui, portanto: “Trata-se, acima de tudo, de um problema de soberania nacional”. “Como essas entidades não estão registadas em território nacional, não podem ser chamadas à responsabilidade, o que deixa os trabalhadores numa situação e desproteção total”, detalha, lembrando, contudo, que alguns países europeus já estão a exigir às plataformas o cumprimento das leis laborais laborais como condição para o funcionamento.

De acordo com os dados recolhidos pelo Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia, 10% da população adulta portuguesa já prestou algum serviço através das plataformas digitais e entre 2% e 4% têm aí a sua fonte principal de rendimento. A recolha de dados relativamente às plataformas digitais é, contudo, desafiante, tem sublinhado o Executivo de António Costa, precisamente face às especificidades destas formas de trabalho.

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