Crise causada pela Covid-19 provou que é preciso Estado Social forte, diz Farinha Rodrigues
Especialista em desigualdades e pobreza sublinha que crise pandémica mostrou que é preciso um Estado Social forte e alertou que o pior ainda poderá estar para vir.
O especialista em desigualdades e pobreza Carlos Farinha Rodrigues defendeu que a atual crise provocada pela pandemia da Covid-19 provou que é preciso um Estado Social forte e alertou que o pior ainda poderá estar para vir.
Em entrevista à agência Lusa, o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa, e investigador nas áreas da distribuição do rendimento ou da desigualdade e pobreza afirmou que se há alguma coisa que esta crise provou é que é preciso um Estado Social forte.
Deu como exemplo o caso de muitas famílias em Portugal que viviam da economia informal, “de setores com uma ligação muito ténue ou inexistente ao mercado formal de trabalho”. “Se isso no passado, em termos de crise, funcionava como um escape, como um amortecedor, quando tudo para, essas famílias ficam sem qualquer tipo de rendimento”, apontou, recordando que em março e abril do ano passado o “confinamento relativamente grande” levou a que “a atividade económica ficasse congelada”.
Farinha Rodrigues apontou que exatamente pelo facto de estas pessoas terem “uma ligação muito ténue com o mercado de trabalho”, elas estão também “excluídas dos mecanismos tradicionais de proteção social”. “A Segurança Social habitualmente não lida com aquelas pessoas e portanto, de repente, as políticas públicas foram colocadas perante a necessidade de ter de reinventar alguns dos nossos esquemas para apanhar estas pessoas”, explicou. Razão pela qual acredita que “este é um desafio do presente que ficará também para depois da pandemia”.
“Como é que nós fazemos para trazer estas pessoas para o mercado de trabalho formal, para lhes garantir direitos e deveres”, questionou, dando como exemplo o facto de as políticas públicas terem tido de se adaptar para que a segurança social conseguisse apanhar setores da população que não estavam abrangidos pelos mecanismos regulares de proteção social.
Na opinião do professor e investigador, é isso que justifica que algumas das medidas criadas de apoio às famílias e às empresas, por causa das consequências da pandemia, “tenham sido alteradas cinco, dez vezes”. Farinha Rodrigues acredita, por isso, que ”se alguma coisa esta crise provou foi a necessidade de [haver] um Estado Social forte”.
“Espero que a larga maioria dessas pessoas perceba os benefícios de estar enquadrado no Estado Social. Isso é um processo, não é uma decisão do momento, é algo que suponho, se tudo correr bem, vai demorar anos a concretizar-se, mas é importante alargar a abrangência do Estado Social, alargar a abrangência dos nossos mecanismos de proteção social”, defendeu.
Na comparação entre a atual crise e a crise económica que assolou o país entre 2010 e 2013, durante o período de vigência dos acordos com a troika, Caros Farinha Rodrigues destacou que “há uma diferença muito significativa”. “Há diferenças nas causas, há diferenças nos setores afetados, mas há uma diferença que eu acho muito importante, que foi o papel das políticas públicas”, apontou.
“Na crise de 2010 a 2013 podemos dizer que grande parte das medidas de combate à pobreza praticamente não só não foram ativadas como inclusivamente diminuiu-se a eficácia de algumas dessas medidas. É isso que explica, por exemplo, que durante aquele período de crise enorme, com um aumento imenso da pobreza, os beneficiários do RSI [Rendimento Social de Inserção], por exemplo, tenham diminuído”, apontou. De acordo com o investigador, “desta vez aconteceu o contrário”, e as políticas públicas tentaram reduzir os efeitos da pandemia e da crise económica que lhe está subjacente.
No entanto, Carlos Farinha Rodrigues não consegue ainda dizer se as medidas agora aplicadas tiveram como consequência “um atenuar efetivo” da crise ou se foi apenas “um adiar para a frente de alguns dos seus efeitos”. Da sua análise, trata-se de algo que irá “depender muito das políticas que continuarem a ser seguidas ou não e da evolução da pandemia”.
Referiu que houve respostas inclusivamente para problemas novos que esta pandemia trouxe, como o caso das famílias dependentes da economia informal e fora do alcance da proteção social e para as quais as políticas públicas tiveram de se adaptar.
Para Farinha Rodrigues, “é expectável que haja algum retrocesso” nos indicadores de pobreza, mas refere que sem as medidas que o Governo foi implementando “possivelmente a situação seria muito pior”, dando como exemplo “a importância que teve o lay-off para milhares e milhares de pessoas em Portugal”.
“As medidas que foram tomadas permitem atenuar a crise, eventualmente não impedem que nós vamos registar um agravamento dos principais indicadores de pobreza, eu isso estou convencido que acontecerá, basta olharmos para o que acontece à nossa volta e vemos que há muitas famílias agora em situações com níveis de precariedade grandes”, sublinhou. Farinha Rodrigues diz mesmo que há outro aspeto que lhe motiva preocupação: “Eu não tenho a certeza se do ponto de vista social já atingimos o pior”.
“Muitas dessas medidas foram medidas de emergência que tentaram atenuar o agravamento da crise, mas deixaram várias espadas sobre a cabeça das pessoas, basta pensarmos nas moratórias”, apontou. Explicou, por isso, que não é ainda possível antecipar “com algum realismo” qual será o futuro, sublinhando que isso está dependente de fatores como a evolução da pandemia ou a recuperação pós pandemia, dois “fatores de incerteza muito grandes”.
No entanto, defendeu como essencial que seja feito um combate à pobreza com um mecanismo integrado que acabe com “as medidas avulsas, fragmentadas, segmentadas” e que traga “um conjunto de estabilizadores automáticos que reajam às várias crises que possam surgir”.
“Temos que garantir que o nosso estado social, as nossas políticas públicas, no desenho e na implementação dessas medidas, têm a flexibilidade suficiente para se adaptar e garantir uma resposta pronta e eficiente a qualquer tipo de crise que surja”, rematou, defendendo que seja uma resposta sistémica aos problemas sem estar dependente de nenhum governo em concreto.
RSI deveria ser a chave numa estratégia contra a pobreza, diz especialista
O especialista em desigualdades sociais Carlos Farinha Rodrigues defendeu que é preciso repensar e reajustar o Rendimento Social de Inserção no âmbito de uma política de combate à pobreza, mas também rever grande parte dos mecanismos de proteção social.
Em entrevista à agência Lusa, o professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa, e investigador nas áreas da distribuição do rendimento ou da desigualdade e pobreza disse que “claramente” é preciso “rever grande parte dos mecanismos de proteção social”, sublinhando que “as políticas sociais são essenciais para responder a situações de maior precariedade social e de pobreza”.
No entanto, ressalvou que “não serão nunca as políticas sociais só por si que resolvem o problema da pobreza”, defendendo que para isso é preciso que haja uma articulação entre políticas sociais e políticas económicas e lembrando que o que acontece no Ministério das Finanças “tem implicações óbvias na distribuição dos rendimentos, na pobreza e na desigualdade”. “Por isso, ponto um: a questão da pobreza não pode ser resolvida só pelas políticas sociais, ponto dois: as políticas sociais são indispensáveis para esse enquadramento”, defendeu.
Nesse sentido, apontou o Rendimento Social de Inserção (RSI), um apoio social destinado a pessoas que se encontrem em situação de pobreza extrema, como “uma das medidas que deveria ser chave numa estratégia de combate à pobreza”, admitindo que é preciso que seja repensada.
“Temos aqui uma medida que precisa de ser reajustada aos novos tempos, precisa de ser consensualizada e precisa de ser explicada”, defendeu Farinha Rodrigues, lembrando que esta prestação social completa 25 anos de existência e que, por isso, é preciso fazer um balanço do que correu bem e do que correu mal apesar de a ideia original ter sido “extremamente generosa e extremamente válida”.
De acordo com o professor e investigador, trata-se de uma medida que “é muito incompreendida por largos setores da população”, sobre a qual “existe um estigma muito grande”, nomeadamente de que é destinada a “quem não quer trabalhar”: “Ou pior ainda, é para os ciganos que não querem trabalhar”.
“Ambas as ideias são completamente falsas. Não é possível ver discriminação por etnia, mas não tenho dúvidas nenhumas que o número de beneficiários do RSI ciganos é menos de 5% do total”, defendeu.
Entende, por isso, que houve um “falhanço completo” por parte do Estado na sua obrigação de explicar a importância desta medida, razão pela qual defendeu que seja feita uma campanha de informação, apontando que “esta é a altura para o fazer”.
“Numa altura em que ao nível da União Europeia se estão a dar passos na implementação do pilar europeu dos direitos sociais, em que uma medida como o rendimento mínimo é estruturante desse pilar, acho que é necessário fazer uma rediscussão do que é o nosso RSI, o que é preciso fazer para o melhorar, o que é preciso fazer para lhe retirar esta capa negativa que muitos lhe puseram em cima e este é o momento para pensarmos nisso”, apontou.
Para isso, Carlos Farinha Rodrigues entende que é preciso aumentar a eficácia desta prestação social, que ela seja dirigida às pessoas que de facto necessitam e que tenha resultados, não só na parte da transferência de recursos, mas também no processo de inclusão na sociedade.
Defende igualmente que as alterações que venham a ser feitas sirvam para “dar consistência a um conjunto muito disperso de políticas sociais”, muitas com “montantes insignificantes”, mas que “geram ineficiências e perda de recursos”, sublinhando que a atual legislação permite acumular o RSI com outras 14 prestações sociais.
De acordo com o professor e investigador, é preciso também olhar para os próprios montantes do RSI, já que, com a atual legislação, e dependendo do tipo de família, o valor pago corresponde a entre 40% a 60% do limiar da pobreza, ou seja, valores entre os 216 euros e os 324 euros, já que o limiar da pobreza se situa nos 540 euros.
“Eu defendo que deveríamos caminhar, não de um dia para o outro, mas no horizonte temporal, por exemplo, durante esta década, para uma maior convergência entre os valores do RSI e os valores do limiar de pobreza”, disse Farinha Rodrigues, sublinhando que isso afetaria também o Indexante dos Apoios Sociais (IAS), o valor de referência para o cálculo das várias prestações sociais.
Esse aproximar progressivo ao valor do limiar da pobreza, implicaria necessariamente um aumento do valor, apesar de isso ser apenas “uma parte do que tem de ser mudado”. Farinha Rodrigues admitiu que esse processo não será fácil, uma vez que o limiar da pobreza não está muito distante do valor do salário mínimo nacional (665 euros) e este do salário médio (cerca de 1.220 euros), o que, na opinião do especialista, significa que são precisas ao mesmo tempo medidas de combate às desigualdades que promovam não só o aumento do salário mínimo, mas tragam também um crescimento efetivo do salário médio.
“Claramente acho que o RSI é uma daquelas medidas que tem de ser repensada, os princípios básicos são exatamente os mesmos que estão desde o início, continuam válidos e estão consagrados no pilar europeu dos direitos sociais”, explicou.
Sublinhou, aliás, que a ideia original do RSI mantém-se, ou seja, é uma medida que é capaz de combinar transferências de recursos para as famílias em situação de grande precariedade e apoio na sua inclusão social, e defendeu que o RSI só faz sentido se tiver estas duas componentes.
Na opinião de Farinha Rodrigues, o RSI é “fundamental” para que os pobres deixem de ser pobres e faz “um balanço muito positivo” dos seus 25 anos de existência porque “permitiu de facto assegurar condições de sobrevivência, de recursos, de alguma dignidade e até da inclusão de algumas famílias”.
Como aspeto positivo mais importante destacou o papel que o RSI teve na diminuição do abandono escolar em Portugal, já que uma das condições para a atribuição era a obrigatoriedade da frequência escolar, enquanto como ponto negativo escolheu os fracos resultados ao nível da inclusão social, a parte mais fácil de cortar “quando se pretendia reduzir a eficácia e o efeito do RSI”.
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