Despacho sobre faturas da Endesa é legal mas há riscos para o Estado e empresa

Violação do contrato ou atraso nos pagamentos são duas situações em que a Endesa pode processar o Estado. Já o Governo pode resolver os contratos se Endesa não respeitar condições.

A decisão do Governo de proceder à validação das faturas da Endesa antes de as pagar não suscita dúvidas quanto à sua legalidade. Ao ECO/Capital Verde, João Macedo Vitorino garante que “o próprio despacho invoca o artigo da Constituição e os diplomas que permitem o primeiro-ministro emitir aquele” documento e que por isso “está dentro dos limites da lei”.

No entanto, os juristas ouvidos pelo ECO/Capital Verde alertam que os contratos celebrados entre as duas entidades devem ser cumpridos por ambas as partes, e isso inclui também o cumprimento do prazo de pagamento das faturas por parte do Estado. Ou seja, o Governo pode, sim, ativar um mecanismo que obrigue a que as faturas sejam validadas pelo secretário de Estado Adjunto e da Energia, João Galamba, antes de estas serem pagas, mas não pode exceder o período máximo de 30 dias previsto na lei para o pagamento das mesmas. Caso seja ultrapassado, a Endesa tem direito a pedir uma indemnização ao Estado.

Segundo José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Advogados, a Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, exige que o pagamento não possa demorar mais do que 30 dias ou no máximo 60 dias, incluindo quaisquer mecanismos de verificação de faturas (estes não podem demorar mais de 30 dias). Isto “significa que se forem ultrapassados estes prazos, a Endesa passa a ter direito a juros de mora e a poder resolver o contrato caso o montante em dívida exceda 25% do valor total do contrato ou estejam em dívida já seis meses, sem contar com pedidos indemnizatórios”, explica o advogado.

A questão que se impõe agora é: quanto tempo levará ao secretário de Estado a validar essas faturas? João Macedo Vitorino antecipa que o “novo procedimento burocrático vai ocupar muito tempo” ao gabinete de João Galamba. “A Secretaria da Energia é uma secretaria que nos tempos recentes tem tido imenso trabalho. É o setor estratégico com mais encargos neste momento e mais desafios para satisfazer. Vai ter de arranjar meios e pessoas para validar estas faturas”, aponta o sócio fundador da firma de advogados Macedo Vitorino.

Mas o incumprimento dos prazos de pagamento não é o único risco para o Governo. Na verdade, existem mais duas situações em que a Endesa pode processar o Estado na sequência deste despacho, revela o especialista da SRS Advogados. Uma delas seria se o próprio despacho assinado pelo primeiro-ministro António Costa violar as regras fixadas no contrato de fornecimento, pois, “isso pode dar lugar à resolução do contrato pela Endesa, com um pedido indemnizatório pelos danos sofridos”, argumenta, “desde logo pelas vantagens económicas que a Endesa esperava licitamente obter com a execução normal do contrato”.

Já num terceiro cenário, em que a energética espanhola aceite uma alteração aos contratos assinados, a Endesa pode “considerar que existiu uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias que tornou o contrato mais caro, podendo a partir daí pedir um reequilíbrio económico e financeiro do contrato“, indica a mesma fonte.

Por outras palavras, esclarece José Luís Moreira da Silva, “a Endesa pode processar cada uma das entidades públicas com quem contratou se tiver motivos para resolver o contrato (por violação do contrato ou por atraso nos pagamentos) ou para pedir um reequilíbrio económico e financeiro com base neste despacho (por o contrato ficar mais caro)“.

Porém, da parte do primeiro-ministro já foi dada a garantia, em declarações ao Observador, de que o despacho sobre a Endesa é “preventivo” e “não altera contratos”. O objetivo, conta a mesma publicação, é sobretudo dar um sinal a empresas para que verifiquem as faturas da Endesa, tal como o Estado fará a partir de agora.

Mas mesmo que o despacho não configure uma modificação unilateral do contrato, fonte jurídica explicou ao ECO/Capital Verde que “pode haver uma questão de violação do princípio da igualdade” já que apenas as faturas da Endesa parecem estar a ser alvo de escrutínio prévio. Caso se venha a registar um aumento de preços, que a próprio Endesa já afastou, e “se outras energéticas tiverem o mesmo nível de aumento dos preços e não estiverem sujeitas ao mesmo procedimento de aprovação de faturas, então a Endesa pode impugnar a validade deste despacho nos tribunais administrativos”, defendeu a mesma fonte.

Marcelo garante que despacho não tem “eficácia externa”

O Presidente da República já reagiu ao despacho emitido pelo Governo e garantiu que o mesmo “não tem eficácia externa a não ser política”.

“O senhor primeiro-ministro assinou um despacho interno sobre um procedimento administrativo”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, esta quinta-feira, em declarações aos jornalistas. “Não tem a ver com contratos e rescisão de contratos. Não tem eficácia externa a não ser política”, disse.

Ao ECO/Capital Verde, fonte jurídica explicou que o despacho assinado por António Costa “é muito dificilmente impugnável porque não tem eficácia externa“, uma vez que não “produz efeitos direta e imediatamente na esfera jurídica da Endesa“. Ou seja, o documento, apenas tem repercussões sobre “o plano de organização interna do Estado português” não comprometendo a operação da entidade energética ou dos seus contratos.

“Se deste mecanismo centralizador decorreram atuações que depois se externalizam no plano de cada um dos contratos e que a Endesa repute como ilegais aí sim tem à sua disposição meios judiciais para reagir, mas tenho dúvidas sobre a suscetibilidade de ir impugnar direta e imediatamente este despacho”, sublinha a mesma fonte.

Quanto às declarações do presidente da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva, o Chefe de Estado considera ter sido “um comportamento estranho daquela entidade”, acrescentando não ter sido “a ideia mais brilhante do mundo suscitar questões sobre uma matéria tão sensível”.

“Práticas especulativas” deixariam entidades públicas resolver contrato

O despacho publicado pelo Governo no início da semana, na sequência das declarações do presidente da Endesa, Nuno Ribeiro Silva, sobre um possível aumento na ordem dos 40% no preço da fatura da eletricidade já este mês, é aparentemente inédito. João Macedo Vitorino admite não ter memória de alguma vez o Estado ter tomado semelhante ação contra uma empresa em Portugal.

Mas para o advogado, é importante relembrar que a Endesa não avançou com nenhum aumento no preço da energia que fornece, apenas alertou que tal poderia acontecer num futuro próximo na sequência do mecanismo ibérico. “Se me perguntar se os fundamentos que a lei prevê para tomar este tipo de medidas ocorrem neste tipo de circunstância? Aí diria que não. Não há nenhuma fatura que tenha sido emitida pela Endesa com esse acréscimo de preço. O que aconteceu foi uma declaração por parte do presidente a dizer que estava a contar com que no futuro existisse um aumento de até 40% nos preços. Foi o que ele disse”, frisa o fundador da Macedo Vitorino.

Questionado sobre se o Estado pode resolver contratos com base naquilo que chamou de “ameaças de práticas especulativas”, o sócio da SRS Advogados garante que não, explicando que são precisas “que as práticas especulativas realmente existam”.

“As entidades públicas poderão resolver o contrato se a Endesa violar as suas obrigações, designadamente em relação ao preço porque se obrigou a fornecer energia”, explica José Luís Moreira da Silva.

“A Endesa, como qualquer outro prestador de serviços não pode exagerar no preço da fatura”, sublinhou ao ECO/Capital Verde outro advogado que preferiu não ser identificado. “O Estado ou as entidades publicas podem reagir: demonstrando-se que a fatura não tem cobertura contratual, o Estado tem um prazo para a entidade pública, antes de proceder ao pagamento, analisar a regularidade da faturação. Quando a fatura está irregular, o que pode acontecer por uma multiplicidade de razões, deve comunicar isso ao fornecedor que verificará ou não da razão da entidade pública e corrigirá a faturação. Se não corrigir o Estado não paga e fornecedor vai ter de resolver o problema em tribunal, ou em tribunal arbitral se houver uma convenção de arbitragem nesse contrato”, acrescenta.

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) já afirmou estar atenta ao comportamento dos comercializadores de eletricidade na sequência desta polémica. O regulador também já admitiu a aplicação de coimas àqueles que cobrarem valores muito acima das tarifas reguladas ou das tarifas transitórias fixadas pela ERSE, ao cliente final. Tal como aponta o advogado, a coima pode chegar até aos “10% do respetivo volume de negócios realizado no exercício imediatamente anterior à decisão final condenatória proferida pela ERSE.”

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