Intervenção no mercado da eletricidade europeu: quais as opções?
Perante o aumento de custo com a eletricidade, a Comissão Europeia considera intervir no mercado da eletricidade europeu. Conheça alguns dos caminhos possíveis.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, anunciou que está a ser preparada uma “intervenção de emergência e uma reforma estrutural” no mercado da eletricidade da União Europeia (UE), tendo em conta os preços galopantes a que se tem assistido um pouco por toda a Europa. Um porta-voz da Comissão acrescentou, um dia depois, que as medidas mais imediatas serão anunciadas dentro de semanas, e a reforma mais estrutural avançará no início do próximo ano. Fonte do setor indica ao ECO/Capital Verde que estão em cima da mesa pelo menos dois tipos de intervenção: um alargamento do chamado “mecanismo ibérico” ao resto do continente europeu e a divisão do atual mercado grossista em dois. Mas há mais hipóteses que podem ser tidas em conta, recolhidas entre especialistas pelo ECO/Capital Verde.
“A Comissão Europeia está a trabalhar em duas questões diferentes: uma intervenção de emergência, a fim de aliviar algumas das questões que surgiram no setor da energia, tendo em conta a agressão da Rússia contra a Ucrânia e as perturbações nos fornecimentos à Europa e o efeito que isso teve nos preços e na Europa, em particular nos preços do gás e, portanto, também nos preços da eletricidade e, em segundo lugar, uma reforma mais estrutural do modelo de mercado da eletricidade”, explicou o porta-voz principal da Comissão Europeia, Eric Mamer.
A questão coloca-se porque, atualmente, o mercado grossista da eletricidade – onde os produtores a vendem aos comercializadores e a grandes consumidores – é um mercado marginalista. Ou seja: a cada hora são colocadas ofertas, das mais baratas – geralmente aquelas com origem renovável – até às mais caras – geralmente, de fonte fóssil – favorecendo as energias mais baratas. No entanto, é a última tecnologia a ser usada, portanto a mais cara do grupo, que define o preço que todos os produtores vão receber.
Num contexto em que os preços do gás natural atingem níveis recorde e que a situação de seca limita a possibilidade do uso de energia hídrica, o gás está a puxar os preços da eletricidade a nível europeu muito para cima, apesar de o anúncio da intervenção ter contribuído para algum alívio.
O atual mercado marginalista, analisa Gonçalo Aguiar, engenheiro electrotécnico e especialista em energia, “incentiva o investimento em tecnologias de baixo custo, pois são estas que lucram mais”, e evita que, como num modelo de licitação (pay-as-bid), os produtores tendam a subir os respetivos preços. Entre as desvantagens conta-se que, ao fazer a remuneração das energias limpas depender do preço do gás, cria-se o que pode ser considerado um incentivo perverso a manter o gás natural escasso e a preços altos, indica a mesma fonte.
Mecanismo ibérico torna-se europeu
Os preços da eletricidade na Península Ibérica têm-se distinguido pela positiva dos preços no resto da Europa, já que a Comissão Europeia permitiu a implementação do chamado mecanismo ibérico: um mecanismo que veio definir um limite aos preços do gás natural que é usado na produção da eletricidade. Esta energia pode assim ser vendida a um preço mais baixo no mercado grossista. Para que os produtores, ou seja as centrais a gás, não fiquem prejudicados com o limite imposto, são compensados com um subsídio, que é pago pelos beneficiários do mecanismo – isto é, aqueles que têm a fatura da eletricidade indexada a este mercado ou qualquer consumidor que tenha renovado o contrato desde que o mecanismo foi anunciado e ditou algum alívio.
A título de exemplo, os preços negociados no mercado ibérico para o dia 31 de agosto, tendo em conta já o custo do mecanismo, situam-se nos 476,39 euros por megawatt-hora, informa a Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG). No mesmo dia, de acordo com a plataforma EpexSpot, França conta com um preço de 651,77 euros por MWh e a Alemanha está nos 604,49 euros/MWh.
No entanto, esta medida foi implementada na Península Ibérica tendo em conta as fracas interligações com o resto da Europa e escalá-la pode ter algumas desvantagens: “Sendo este mecanismo implementado a nível europeu é de esperar que a procura de gás aumente e as exportações de eletricidade para fora da UE também. Isto vai colocar pressão nas provisões de gás já formadas para o inverno e provavelmente um aumento nos preços do gás nos mercados internacionais”, indica Gonçalo Aguiar. Por outro lado, “com países altamente interligados no centro da Europa, torna-se muito mais complexo dividir os custos de forma justa”, diz.
Separar o mercado marginalista em dois
Se parte dos problemas do atual modelo estão relacionados com a contaminação dos preços da eletricidade, produzida a partir de fonte renovável com os da eletricidade produzida a partir de gás, uma das possibilidades é separar a negociação da eletricidade com origem em cada uma destas fontes. A vantagem é que a operacionalização não é complexa, avalia fonte do setor.
No entanto, a mesma indica que esta divisão pode reduzir o interesse no investimento em renováveis, já que retira a hipótese de remuneração mais alta que existe hoje, quando as tecnologias fósseis marcam o preço. “O grande problema desta proposta é que responsabiliza o consumidor em escolher que tipo de energia consumir consoante o preço no momento de consumo, também transferindo-lhe o risco de não abastecimento”, aponta, por sua vez, Gonçalo Aguiar, considerando que já existem dois mercados hoje em dia, dada a opção de assinar contratos bilaterais de fornecimento de energia fora do mercado grossista.
Reforçar apoios
Além de mudanças no funcionamento do mercado de eletricidade, pode atuar-se num alívio dos preços com uma redução da carga fiscal, defendem, em consonância, Gonçalo Aguiar e Miguel Checa, o CEO da Goldenergy, em declarações ao ECO/Capital Verde. O primeiro fala ainda de possíveis iniciativas como distribuir apoios sociais pelos mais afetados e da hipótese de usar as receitas das licenças de emissão de dióxido de carbono para reduzir os custos para os consumidores.
Durão Barroso considera que, perante a invasão russa à Ucrânia, a União Europeia deve “fazer algo semelhante ou comparável” à emissão de dívida conjunta, no valor de 750 mil milhões de euros, com que o bloco europeu respondeu à crise pandémica. A emissão de dívida serviria para “ajudar os países com os custos da energia que se podem tornar insuportáveis”.
Contratos longos e preços fixos
A aposta em contratos de fornecimento de gás a longo prazo poderia ajudar a obter preços mais baixos. Em paralelo, pode-se introduzir ou prolongar mecanismos de remuneração fixa aos produtores não gás. Algo como existe em Portugal, essencialmente no universo da energia eólica, as chamadas feed-in tariff – preços fixos a longo-prazo que, durante vários anos, excederam o preço de mercado, mas desde que se verificam os fortes aumentos de preços da eletricidade têm servido como seguro.
Em França, existe ainda um sistema que obriga a cerca de 25% da energia produzida pelas nucleares da EDF a ser vendido aos comercializadores franceses a um preço fixo de 42 €/MWh, exemplifica Gonçalo Aguiar.
Aposta na energia interna
O CEO da Goldenergy vê como uma boa alternativa para o controlo dos preços da eletricidade a aposta na aceleração da concessão de licenças para a instalação de energias renováveis, através de uma desburocratização e aceleração de processos das autorizações administrativas, e o aumento da capacidade de interconexão entre Portugal e Espanha e entre Espanha e França, tanto no que diz respeito ao gás natural e hidrogénio como na eletricidade.
Gonçalo Aguiar sugere ainda que seja considerada a exploração doméstica de gás natural na União Europeia. Por fim, Miguel Checa entende como relevante o fomento de medidas de eficiência energética e o reforço do financiamento do autoconsumo.
Nacionalizações
“Precisamos ter o controlo total da produção e do nosso futuro energético. Devemos garantir a nossa soberania diante das consequências da guerra e dos desafios colossais à frente”, afirmou a primeira-ministra francesa, Elisabeth Borne, no anúncio da decisão de nacionalizar a francesa Electricite de France.
França reservou 9,7 mil milhões de euros para avançar com a nacionalização desta empresa, que já detinha em 85%. Contudo, “seria demasiado complexo e caro para o orçamento dos Estados adquirir as empresas energéticas de todo o continente europeu, principalmente quando existem empresas detidas por capitais estrangeiros”, considera Gonçalo Aguiar, ao mesmo tempo que relembra o efeito negativo que estas iniciativas poderiam ter em termos de investimento estrangeiro na Europa.
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