O que Lisboa “tem a aprender” com o Porto na gestão hospitalar?
Responsáveis do São João e do Hospital de Gaia explicam ao ECO como funciona o sistema de urgências metropolitanas no Norte, concebido pelo futuro diretor do SNS e elogiado pelo primeiro-ministro.
“É importante haver uma direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para reforçar a necessidade e as possibilidades de [os estabelecimentos de saúde] funcionarem em rede. (…) O Porto tem já há muitos anos um sistema de urgências metropolitanas que asseguram que o cidadão tem sempre uma porta aberta. Lisboa tem muito a aprender com o Porto, não tenho dúvidas nenhumas. Em muitas coisas, nomeadamente em matéria de organização dos serviços de saúde”. A frase foi proferida pelo primeiro-ministro, António Costa, em entrevista à TVI e em resposta a uma questão sobre os problemas nas urgências ocorridos durante o verão, sobretudo na região da capital.
Afinal, o que foi feito, como, porquê e com que resultados? Em declarações ao ECO, a diretora clínica do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) explica que já há cerca de década e meia que a Norte se “percebeu que havia um problema complexo com os serviços de urgências noturnas, que exigiam uma grande disponibilidade de pessoas, de equipamentos e de espaços físicos”. E que em diferentes áreas de especialidade, colocando os hospitais da região a funcionar em rede e com uma coordenação afinada, solidária e transparente, esses recursos podiam ser mais bem rentabilizados.
Maria João Baptista dá o exemplo de uma obstrução da via aérea, em que alguém aspira um pedaço de um alimento, que tem de ser retirado. É um evento raro, mas é preciso dar resposta imediata a um caso desses para salvar a vida dessa pessoa. “E o que se percebeu é que seria muito complicado termos os vários hospitais preparados [para isso] ao mesmo tempo, para uma necessidade que é muito pontual”.
A ARS Norte, então presidida por Fernando Araújo, o escolhido do Governo para liderar o SNS, identificou este tipo de situações com as administrações hospitalares da região, assim como as necessidades da população, os recursos humanos, técnicos e físicos existentes e como podia ser organizado e em que áreas específicas.
“Percebeu-se que havia áreas em que era vantajoso – seja pela raridade das situações ou pela especificidade dos equipamentos e dos profissionais – reorganizar os serviços, de tal forma que desse resposta à população de uma forma segura e utilizando os recursos de forma mais eficaz”, acrescenta a responsável do CHUSJ.
Porém, a solução encontrada não foi a mesma para todas as áreas, mas adaptada à dinâmica de cada uma delas. “Aqui é que está o Ovo de Colombo. Não podemos replicar a mesma fórmula para todas as áreas. Não é um pozinho mágico. É preciso aferir a dimensão do problema, a disponibilidade das equipas, preparar a estrutura e adaptar a solução”, relata.
Há casos, como o da psiquiatria ou otorrinolaringologia, em que a urgência funciona no São João (no caso da primeira coordenada com o Magalhães Lemos; na segunda pela disponibilidade do equipamento e do espaço físico), ao qual se deslocam equipas dos vários hospitais para assegurar o serviço de urgência. Na gastroenterologia, os vários hospitais da região sabem que no período noturno devem direcionar para o Santo António, onde está uma equipa.
E depois há outras especialidades que são “verdadeiramente partilhadas”, como acontece na pneumologia entre o São João e Gaia (“15 dias cá e 15 dias lá”) ou na oftalmologia entre os dois maiores hospitais do Porto, que desta forma só têm de garantir urgência duas semanas por mês. Para o número de doentes é suficiente e não precisam de ter as duas equipas em prontidão no período noturno.
Alguém tem de olhar para toda esta rede de forma articulada e tomar decisões, que é a ARS. Todos os hospitais têm as suas equipas, mas há um coordenador por áreas de especialidade para garantir que as escalas funcionam, que as pessoas passem os doentes umas às outras ou para encontrar soluções para algo tão simples como onde estacionar o carro [no outro hospital].
A diretora clínica do CHUSJ indica que “o mais importante é que haja articulação”, seja para fazer o trabalho de base para montar este processo, seja para o manter. “Há um trabalho essencial de gestão. Alguém tem de olhar para toda esta rede de forma articulada e tomar decisões, que é a ARS. Todos os hospitais têm as suas equipas, mas há um coordenador por áreas de especialidade para garantir que as escalas funcionam, que as pessoas passem os doentes umas às outras ou para encontrar soluções para algo tão simples como onde estacionar o carro [no outro hospital]”, resume. Em estudo está o alargamento desta fórmula a outras áreas, até porque há cada vez mais especialização e “pessoas diferenciadas em determinadas áreas não são assim tantas”.
Do fim das “capelinhas” ao trabalho que “sai do corpo”
Alexandra Almeida, diretora da Unidade de Gestão do Doente Crítico no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia / Espinho (que abrange o serviço de urgência ou os cuidados intensivos), assistiu de perto à implementação das urgências metropolitanas, por “não se [justificar] que todos tenham as mesmas capacidades quando o número de doentes que serve não justifica o investimento”.
A responsável destaca o papel “aglutinador” da ARS Norte nesta rede de referenciação. “Tem de haver alguém que aglutine todos os intervenientes para criar consensos. Porque sabemos que alguns tentam puxar para a sua capelinha”, frisa Alexandra Almeida.
Pode este modelo ser replicado a sul? “É uma questão de organização, de cativar as pessoas e da disponibilidade de cada hospital para participar nesta rede. Em Lisboa há hospitais muito diferenciados, tem de se mexer com interesses em vários serviços e em organizações que já estão implementadas”, desafia esta médica anestesista, que há 30 anos trabalha em exclusividade no SNS.
“Isto sai-nos do corpo, é uma dedicação e um esforço grande. É um compromisso”, completa a mesma responsável. Aponta, por outro lado, as vantagens também para os profissionais de saúde afetos aos hospitais que integram o núcleo desta rede — São João, Santo António, Gaia e Pedro Hispano (Matosinhos) –, que em algumas áreas abrange outras unidades nortenhas, como Braga ou o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.
Replicar este modelo a sul? É uma questão de organização, de cativar as pessoas e da disponibilidade de cada hospital para participar nesta rede. Em Lisboa há hospitais muito diferenciados, tem de se mexer com interesses em vários serviços e em organizações que já estão implementadas.
“É mais fácil gerir uma escala em que só tenho um hospital a 24 horas do que três a 24 horas. Em termos dos próprios recursos de cada hospital, são menos horas que dão. Este período noturno é mais penoso para trabalhar e normalmente é feito em horas extraordinárias, [pelo que] é um aumento do número de horas de trabalho e de encargos, quando o volume de doentes não justifica e a proximidade [entre as unidades hospitalares] é tal que não há risco” para os doentes, completa Alexandra Almeida, em declarações ao ECO.
Além de “minimizar o tempo em que o profissional está exposto à pressão” das urgências, a diretora clínica do São João destaca que, também na perspetiva do utente, este modelo “é o ideal, [já que] a pessoa quer resolver o seu problema da forma mais simples possível”. E, assegura, este funcionamento em rede garante que “em todos os momentos há profissionais para dar resposta” ao episódio de urgência.
Já no que toca à organização interna, Maria João Baptista ressalva que ter a urgência metropolitana de várias especialidades a funcionar num mesmo local, como acontece no maior hospital do Norte do país, exige uma grande capacidade de adaptação e gestão. “Vão estar todas a competir pelo bloco operatório, pelos lugares de internamento e observação. Se não conseguirmos escoar os doentes que cá estão, não conseguimos receber outros”, conclui.
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