Crise na produção automóvel ajuda mercado de usados e reparações, mas falta mão-de-obra
Venda de automóveis não deverá estabilizar até final de 2023, mas parte do setor está a beneficiar com isto, criando mesmo uma situação “inusitada” no mercado de usados, garante Roberto Gaspar.
A produção automóvel nacional recuou 0,2% entre janeiro e outubro deste ano, comparativamente aos dados de 2021. Em relação ao último ano pré-pandemia, o mercado automóvel português já afundou 33,7% face a 2019, avançam os últimos dados da Associação Automóvel de Portugal (ACAP).
A expectativa é de que o cenário não se estabilize antes do final do próximo ano. No entanto, a crise do setor que afeta a produção automóvel pode dar algum alento a setores como o comércio de veículos em segunda mão ou a área da reparação automóvel. Quem o diz é Roberto Gaspar, secretário-geral da Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel (ANECRA).
Questões como a falta de semicondutores ou de matérias-primas, além de um contexto marcado pela inflação elevada e crise energética, têm penalizado a produção de automóveis novos. Alguns destes efeitos já se sentiam durante a pandemia, mas, com a guerra na Ucrânia, os constrangimentos nas cadeias de abastecimento só se têm agravado.
Pelo contrário, o impacto destes fatores no comércio e reparação automóvel tem sido “positivo”, argumenta Roberto Gaspar. “Temos menos carros novos no mercado, o parque automóvel envelhece e isso tem um efeito positivo no setor da reparação”, esclarece o secretário-geral, que acrescenta que o setor da reparação “está bem e regista uma procura enorme”.
Enquanto o comércio de automóveis novos segue em linha com os números de 2021 — um ano que “não foi particularmente brilhante” –, o mercado de usados tem “estado a funcionar muito bem e a ganhar muito dinheiro”, refere o responsável da ANECRA. As vendas neste segmento dispararam em reação às carências de materiais, ou tempos de espera elevados, associados à produção de automóveis novos. Agora, após um forte crescimento em 2021, este ano regista igualmente um aumento nas vendas, mas também no preço.
Face a uma procura crescente aliada a uma dificuldade em renovar stocks, deu-se um fenómeno “inusitado” no setor automóvel, considera Gaspar. “O normal de um carro usado é depreciar 10% a 15% de um ano para o outro. No último ano, o mesmo modelo, que deveria ter depreciado 15%, apreciou 20%”, esclarece.
Enquanto isso, o setor da reparação automóvel beneficia da crise na produção, mas sofre com outras questões. “Há peças que já começam a faltar, outras demoram bastante mais tempo a chegar, pelo que os carros ficam mais tempo imobilizados”, explica o secretário-geral.
No entanto, o principal problema, tanto do comércio como da reparação, diz respeito à mão-de-obra. Roberto Gaspar confirma que existem operadores no topo da sua capacidade de laboração. Esta “crise de pessoas”, como descreve, traduz-se num “problema sério” que limita a capacidade do setor, garante.
Crescimento dos “computadores com rodas”
Questionado pelo ECO quanto ao impacto dos veículos elétricos na indústria, o secretário-geral expressou que o setor atravessa uma fase de transição, embora esta não seja igualmente expressiva em todas as vertentes.
Dado que um veículo a combustão tem entre “1.000 a 2.000 peças móveis ou mecânicas” na sua composição, contra “cerca de 20-30” nos veículos elétricos, isto provoca uma “diferença substancial” no tipo de manutenção necessária. Neste sentido, o responsável da ANECRA partilha que, relativamente à intervenção em veículos elétricos, “começa a haver cada vez mais técnicos de mecatrónica”.
A aposta neste tipo de técnicos, no entanto, não se resume exclusivamente à proliferação de veículos elétricos. Os carros são, cada vez mais, “computadores com rodas” dotados de múltiplos sensores e capazes de gerir elementos desde o consumo de combustível à potência do motor, explica. Como tal, cada vez mais, são os técnicos de mecatrónica a tratar dos carros quando vão à oficina, sendo esta uma tendência a intensificar-se quando o assunto são carros elétricos.
O caminho aponta, inclusivamente, para que grande parte das operações destes técnicos possa ser feitas remotamente, garante Gaspar, havendo lugar para que tanto fabricantes como operadores de aftermarket (oficinas), estejam ligados ao software das viaturas. As vantagens desta conectividade incluem a deteção e correção, em tempo real, de anomalias.
Já no que toca ao comércio, está em curso um processo “absolutamente disruptivo”, garante Roberto Gaspar. O modelo tradicional de distribuição automóvel – no qual existe um fabricante, um importador/distribuidor e depois os concessionários – está a dar lugar ao modelo de agenciamento. Neste modelo, segue-se uma “lógica mais ligeira de funcionamento”, sendo uma solução já em curso para gigantes como a Stellantis, que rescindiu dos contratos com os seus concessionários a nível europeu.
Algumas marcas planeiam implementar um modelo de agência assente na venda direta online, “copiando um pouco o modelo da Tesla”, explica o secretário-geral, embora grande parte desses projetos esteja associada a viaturas elétricas. A principal vantagem deste modelo de negócio é a redução de custos com logística, estrutura e implementação, explica Gaspar, mas tal é possível “porque as viaturas elétricas são mais standardizadas, com menos variações face aos motores a combustão”.
O aumento dos veículos elétricos leva ainda os reparadores a investir em pessoal e equipamento apropriado, especialmente nos reparadores oficiais (representantes das marcas), mas tal não se verifica nas oficinas. “Como é um mercado muito residual, ainda não estão muito vocacionados para isso”, conta o responsável.
Além disso, comparativamente aos 6,5 milhões de carros no parque automóvel português, “estamos a falar de uns milhares de carros elétricos e ainda não compensa os grandes investimentos que têm de ser feitos”, acrescenta o secretário-geral.
Transição energética, uma “aspirina no problema das emissões”
Em Portugal, existem 6,5 milhões de viaturas no parque circulante, segundo Roberto Gaspar, sendo que, sob “condições normais”, a venda anual de automóveis ronda os 200 mil. Tendo isto em consideração, o secretário-geral defende que, “se assumirmos o absurdo de que, nos próximos dez anos, 100% dos carros vendidos serão elétricos, só teríamos dois milhões de carros elétricos no parque automóvel, seria apenas 30% da frota”, destaca.
"Se assumirmos o absurdo de que, nos próximos dez anos, 100% dos carros vendidos serão elétricos, só teríamos 2 milhões de carros elétricos no parque automóvel, seria apenas 30% da frota.”
Para Gaspar, a transição para a mobilidade elétrica será um processo que irá demorar décadas, pelo que o responsável considera que as viaturas a combustão não irão desaparecer de forma repentina. Também neste sentido, o secretário-geral da ANECRA recorda que um em cada quatro carros a circular em Portugal tem mais de 20 anos, um número que passa para 50% da frota automóvel portuguesa se considerarmos os carros acima de dez anos.
“Quando metemos milhares carros elétricos no mercado, estamos apenas a tomar uma aspirina para resolver a questão das emissões. Há toda uma questão muito mais grave para resolver”, garante Gaspar. Por este motivo, a ANECRA considera fundamental baixar as emissões dos veículos através dos combustíveis baixos em carbono (biocombustíveis e/ou combustíveis sintéticos).
Contudo, a associação considera que a aposta nos combustíveis baixos em carbono não é uma alternativa devidamente explorada, dado que é uma solução ainda em desenvolvimento. A entidade considera mesmo os combustíveis sintéticos como uma resposta complementar à transição energética, mas alerta para “a necessidade de massificação ou, pelo menos, de haver um efeito de escala para baixar os custos de produção”.
Enquanto o hidrogénio representa uma das alternativas à eletrificação, no caso dos veículos ligeiros, Gaspar considera que os combustíveis baixos em carbono poderão ser uma alternativa viável, já que “o processo de transição tem de passar por estas soluções, senão vai demorar demasiado tempo”.
Para o secretário-geral, “os combustíveis de baixo carbono seriam uma ótima resposta não só para novos carros, como também para o parque existente”, até porque esta aposta poderia tirar partido dos postos de combustível já existentes. Adicionalmente, esta alternativa seria aplicável “com alguns ajustes nos próprios carros a combustão” existentes, embora sublinhe que uma boa parte já os pode utilizar sem quaisquer alterações.
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